Igreja

Obra de misericórdia corporal: enterrar os mortos

Série das Obras de Misericórdia | Corporal

Enterrar os mortos é a sétima e última obra de misericórdia corporal que complementa as seis que foram instituídas por Cristo: “Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado […], porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim” (Mt 25,34-35). A tradição cristã acrescentou posteriormente para chegar ao número sete (da plenitude) “o enterrar os mortos” extraído de Tobias (1,17 ss) e do testemunho dos discípulos que enterraram Jesus no sepulcro (Jo 19, 38-42). Nesse sentido, assim se expressou o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização:

Uma razão mais profunda de tal inclusão é dada por São Tomás de Aquino. Por um lado, sublinha que o silêncio sobre a sepultura nas seis primeiras obras de misericórdia se deve ao fato de estas últimas serem de ‘uma importância imediata’, e por outro lado, indica que assim ‘não caem na desonra os que ficam sem sepultura, já que os corações misericordiosos devem ter afeto pelos defuntos mesmo depois de mortos; e é por essa razão que são louvados os que enterram os mortos, como por exemplo, Tobias e os discípulos que sepultaram Jesus no túmulo’. (ST II-II, q. 32, a.2, ad 1). (2016, p.69).

Esta sétima obra de misericórdia convida-nos a olhar para o testemunho de Nosso Senhor Jesus Cristo narrado nos Evangelhos. Pode-se observar que, em Sua paixão, a crueldade dos homens nega o mais ínfimo gesto de misericórdia para com o Salvador, a quem vemos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo e preso. No entanto, logo depois de morto, lhe é manifestado um gesto de misericórdia para com o seu corpo, misericórdia essa que o próprio Cristo havia semeado no coração dos homens. Mãos piedosas O retiram da cruz, O entregam a sua Mãe, O envolvem num sudário limpo e O enterram num sepulcro novo.

:: Por que rezar pelos mortos?

Essa passagem mostra que os braços dignos para acolher o Cristo morto precisariam ser os de Sua santíssima Mãe, Maria Imaculada – modelo – de puro amor para com Seu Filho e para com o próximo. Com efeito, vê-se nesta circunstância da vida de Jesus um paradoxo perante a postura do gênero humano, sendo que não acolheu o Salvador em seu nascimento, nem em sua vida terrena e – depois de morto – lhe oferece uma digna sepultura, através de José de Arimateia e de Nicodemos. Esses discípulos ocultos de Cristo, valendo-se do cargo que ocupavam, rogaram a Pilatos para que oferecessem a Jesus uma digna sepultura (Jo 19,38-40), demonstrando assim um incomensurável zelo pelo Corpo do Senhor no auge de seu abandono e desprezo por parte dos homens.

De fato, a Igreja reconhece a grandeza do testemunho destes homens – impregnado de heroica valentia e de compaixão para com Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem– e, tendo em conta sua grande importância, fundamenta, através deste fato, esta sétima obra de misericórdia corporal.

Todos os homens, principalmente os cristãos, são chamados a descobrir na morte redentora de Cristo e em sua ressurreição o verdadeiro sentido da vida humana, a fim de que no tempo em que vivem no mundo possam testemunhar, pela fé em Cristo, que a morte não tem a última palavra. Neste sentido, merecem relevo as palavras do Papa Bento XVI em sua Encíclica Spe Salvi quando afirma que “somente Jesus indica o caminho para além da morte. Só quem tem a possibilidade de fazer isto é um verdadeiro mestre de vida” (n. 6). Desse modo, é evidenciada a imortalidade da alma, que ainda nesta vida é fortalecida pela virtude teologal da esperança que traz a certeza da permanência com Cristo após a morte e torna o homem capaz de enfrentar a morte em si mesmo e nos outros com serenidade.

Leia mais:
:: Obra de misericórdia corporal: visitar os presos
:: Dar pousada aos peregrinos
:: Vestir os nus
:: A misericórdia é para todos

A Igreja como continuadora da missão de Cristo no mundo (Dominus Iesus, n.16) quer, por meio desta obra de misericórdia, ensinar aos cristãos e a todos os homens de boa vontade que saber morrer é tão importante quanto saber viver, haja vista que em ambos os momentos podemos ser ajudados. Reconhece a importância de uma preparação para a saída deste mundo por meio do viático (sacramento da Confissão, Unção dos enfermos e Eucaristia), ao mesmo tempo em que considera relevante a presença afável e consoladora dos entes queridos e das pessoas próximas, não excluindo a possibilidade do diálogo com o enfermo (a) de modo natural acerca de sua morte iminente.

Enterrar os mortos é uma obra de misericórdia que fortalece a fé dos vivos na vida eterna junto de Deus e proporciona uma contemplação acerca do poder de Sua misericórdia, com que, graças à ressurreição de Cristo, podemos alargar o amor para além dos confins desta vida. No entanto, aos que experimentam o falecimento de um parente próximo prestemos-lhes toda a atenção devida, sobretudo, com nossa presença, oração e serenidade, sendo deste modo consolo a quem necessita. No mundo contemporâneo pode-se verificar que são muitos os que carecem de uma palavra de conforto neste momento de dor que lhes recorde a bondade Deus Pai, que se ocupa também dos que partiram.

Os cristãos também testemunham que o amor não morre, continua sempre vivo e atuante

Faz parte da tradição cristã o cuidado e o apreço para com os lugares onde repousam os defuntos, o que não se trata somente de avivar a recordação e de rezar por suas almas, mas, é também uma maneira de demonstrar o respeito para com os seus corpos, já que cremos firmemente na ressurreição da carne. Desse modo, os cristãos também testemunham que o amor não morre, continua sempre vivo e atuante.

Maria santíssima, a Mãe do Crucificado é o modelo supremo dessa verdade, Ela que, ao acolhê-lo morto sobre o seu regaço, testemunhou a profundidade e a vivacidade de seu amor, enchendo-o de cuidados mesmo com o coração transpassado de dor. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no “Santuário celeste” porque participou intimamente do mistério de Seu amor e, portanto, é o grande modelo de serviço aos vivos e aos mortos. Que, por Sua intercessão, possamos compreender que enterrar os mortos com dignidade nos aproxima de Cristo que disse que todas as vezes que assim servirmos ao próximo, a Ele mesmo estamos servindo (Mt 25,40).

Áurea Maria
Comunidade Canção Nova

Referências

BENTO XVI. Carta Encíclica Spe Salvi. 30 nov 2007. Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi.html. Acesso em: 24 jun. 2020.

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. 06 ago. 2000. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000806_dominus-iesus_po.htm.l Acesso em: 15 maio 2020.

CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. As obras de Misericórdia Corporais e Espirituais. Tradução de Mário José dos Santos. São Paulo: Paulinas, 2016.

SCHOKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. Tradução de Ivo Storniolo, José Bortolini e José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2002.

Deixe seu comentários

Comentário