SAGRADA TRADIÇÃO

A nossa fé é uma Fé Apostólica: a Riqueza da Sagrada Tradição

Depositário infiel

Em algumas situações, um juiz pode nomear uma pessoa para ser responsável por cuidar de bens ou coisas penhoradas ou arrecadadas pela justiça. Imaginemos a seguinte situação: por conta de uma dívida, um juiz determina que um veículo de luxo seja penhorado e nomeia certa pessoa, João, como depositária daquele bem. Sua obrigação será preservar o veículo até o eventual leilão ou a retirada da restrição. Numa noite de sábado, o João tenta ligar o seu próprio carro e não consegue: a bateria arriou. Ele olha para a sua garagem e pensa: “Que mal farei se simplesmente levar minha namorada ao cinema nesse carrão? Em algumas horas o carro estará de volta à minha garagem e ninguém nunca saberá disso”. Como essa é uma história exemplificativa, sabemos bem que vai acontecer o imponderável, o imprevisível, o indesejado: alguém avança um sinal vermelho e colide violentamente com o carro de luxo. Ninguém se machuca seriamente, mas o carro está irremediavelmente perdido e João, a quem a justiça chama agora de “depositário infiel”, terá que prestar contas do seu erro. E que erro foi esse? Não foi fiel ao depósito, ou seja, não devolveu o bem exatamente como o recebeu.

Se o João do exemplo acima não teve a preocupação de ser fiel ao depósito, João, o discípulo mais amado teve de sobra, e não somente ele, mas Pedro, André, Tiago, Paulo e todos os discípulos que foram encarregados pelo próprio Jesus de pregar o Evangelho a todos os povos. “Ensinai-lhes a cumprir tudo o que vos mandei. Eu estarei convosco sempre, até o fim do mundo”. Com uma ordem e uma promessa de Jesus, Mateus encerra o seu Evangelho. Uma pergunta que parece simples foi formulada por diferentes pessoas com as mais distintas intenções ao longo dos dois mil anos de história da Igreja: o que é “tudo o que vos mandei”? O que exatamente constitui a mensagem de Cristo, que ele manda seus apóstolos ensinarem a todos os povos?

Transmissão da Fé

A Igreja, como sabemos, é anterior à Bíblia, nasceu do Sangue e da Água que jorraram do lado de Jesus na cruz. Quando Jesus partiu para o céu e ainda faltavam décadas até que o primeiro Evangelho fosse escrito, os apóstolos esforçaram-se sobremaneira para seguir à risca aquilo que Jesus ensinou e lhes ordenou que fizessem. Como sabemos, Cristo não deixou nada escrito, de maneira que a pregação dos apóstolos era baseada inteiramente no que o Mestre disse: “A fé entra pelo ouvido, ouvindo a mensagem do Messias” (Rm 10,17). Paulo manifestou em diversas oportunidades sua grande preocupação com a fidelidade na transmissão da fé recebida do próprio Jesus, aquilo que ele chamava de “a mensagem da fé e a boa doutrina” (1 Tm 4, 6): “Antes de tudo, eu vos transmiti o que havia recebido: que Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras, e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras” (1 Cor 15, 3).

Jesus foi para o céu, mas deixou um depósito, não de bens terrenos, mas de fé, e até que Ele volte, “guardar o Depósito da Fé é missão que o Senhor confiou à sua Igreja e que ela cumpre em todos os tempos”1. Diante dos perigos do mundo, das tentações, da fragilidade própria do homem, muitos começaram, ainda no início da Igreja, a deturpar os ensinamentos de Cristo, retirando aquilo que lhes parecia inconveniente e acrescentando o que lhes interessasse. Paulo sempre foi claro a esse respeito: “Mas, se nós ou algum anjo do céu vos anunciar um evangelho diferente daquele que vos anunciamos, seja maldito” (Gl 1,8). Não por acaso ele alerta Timóteo: “Conserva o depósito, evita a charlatanice profana e as objeções de uma ciência falsa” (1 Tm 6,20).

A Revelação

Esse depósito de fé, da Revelação, encontra-se em duas grandes fontes: escrita (a Sagrada Escritura) e não escrita (a Sagrada Tradição). Antes que houvesse a Bíblia, porém, o depósito da fé era constituído apenas pela Sagrada Tradição, assim explicada pelo Catecismo da Igreja Católica:
“Cristo Senhor, em quem toda a revelação do Deus altíssimo se consuma, tendo cumprido e promulgado pessoalmente o Evangelho antes prometido pelos profetas, mandou aos Apóstolos que o pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, comunicando-lhes assim os dons divinos.

Para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os bispos como seus sucessores, “entregando-lhes o seu próprio ofício de magistério”. Com efeito, a pregação apostólica, que se exprime de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se, por uma sucessão ininterrupta, até à consumação dos tempos. Esta transmissão viva, realizada no Espírito Santo, denomina-se Tradição, enquanto distinta da Sagrada Escritura, embora estreitamente a ela ligada. Pela Tradição, a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo em que acredita”.

Sagrada Tradição e Sagrada Escritura possuem o mesmo valor, e ambas são Palavra de Deus Revelada. Como afirmou São Tomás More, “a palavra de Deus é tão forte não escrita quanto escrita”. Não esqueçamos nunca que a fé católica não é a fé da “sola scriptura”, mas uma fé apostólica, animada pelo Espírito Santo e cujo caminho de autenticidade podemos percorrer, partindo do Papa Francisco, passando pelo Papa Bento XVI, São João Paulo II e por cada bispo de Roma, até chegarmos a São Pedro e aos apóstolos.

Como é bom ser católico e andar seguro nesse mundo, tendo a clareza de que não estamos nas mãos de um depositário infiel, que vai fazer mau uso do bem precioso que recebeu. Estamos, de fato, na barca de Pedro, guardiã do depósito da fé até que Nosso Senhor Jesus Cristo venha!

Vinde, Senhor Jesus!

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