SÃO BENTO, ROGAI POR NÓS

Ora et Labora: a espiritualidade de São Bento na vida do cristão

A oração prepara o terreno da ação

“Ora e trabalha” era um dos lemas de São Bento e significava que o discípulo deveria viver imerso na vida de oração, mas nunca desconectado da realidade, sem deixar de cumprir os deveres do cotidiano. Nesse sentido, veja a afirmação o Papa Bento XVI, sobre São Bento:

“Em todo o segundo livro dos Diálogos de Gregório, ilustra-nos como a vida de São Bento estivesse imersa numa atmosfera de oração, fundamento portanto da sua existência. Sem oração não há experiência de Deus. Mas a espiritualidade de Bento não era uma interioridade fora da realidade. Na agitação e na confusão do seu tempo, ele vivia sob o olhar de Deus e precisamente assim nunca perdeu de vista os deveres da vida quotidiana e o homem com as suas necessidades concretas” (BENTO XVI, 2008).

Papa Bento XVI (2008) insiste ainda em dizer sobre São Bento que ele, na “Regra” que escreveu, ressaltava que “a oração é, em primeiro lugar, um ato de escuta (Prol. 9-11), que depois se deve traduzir em ação concreta”. A oração prepara o terreno da ação.
E que ação era essa, regada pela oração? Só poderia ser o cumprimento da vontade de Deus! São Bento foi aquele que entendeu que a ação como cumprimento da vontade de Deus só pode vir por meio da vida de oração. Por isso que o lema é “Ore et labora”. Lembrei das palavras do Mestre quando, em Mt 26, 41, disse: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca”. Segundo G. Bove (2003), a tentação é uma “incitação ao pecado” e “só por meio da fé e da ascese, a liberdade e a responsabilidade da pessoa podem vencer a tentação”.

 

Ore et Labora: a espiritualidade de São Bento na vida do cristão

 

É preciso vigilância 

Orar e trabalhar, portanto, implica, sem dúvida, vigiar em oração para vencer as tentações e, consequentemente, evitar o pecado, para que a ação corresponda à vontade de Deus.

Papa Bento XVI ressalta ainda alguns pontos da espiritualidade de São Bento traduzidos na “Regra” que ele elaborou para os beneditinos, tais como: classifica a vida monástica como um escola de serviço ao Senhor e, ao mesmo tempo, coloca que nada deve se antepor à obra de Deus; dizia que a oração é um ato de escuta que, depois, deve se concretizar por meio da ação; os fatos devem corresponder aos ensinamentos de Deus, sendo isso o que Ele espera, para que Deus seja glorificado em tudo que o monge fizer, a sua vida deve ser uma simbiose entre ação e contemplação.

São Bento afirmava na “Regra”: “O primeiro e irrenunciável compromisso do discípulo de São Bento é a busca sincera de Deus (58, 7) sobre o caminho traçado pelo Cristo humilde e obediente (5, 13), ao amor do qual ele nada deve antepor (4,21; 72,11) e precisamente assim, no serviço do outro, se torna homem do serviço e da paz. Na prática da obediência realizada com uma fé animada pelo amor (5, 2), o monge conquista a humildade (5, 1), à qual a Regra dedica um capítulo inteiro (7). Dessa forma, o homem torna-se cada vez mais conforme com Cristo e alcança a verdadeira autorrealização como criatura à imagem e semelhança de Deus” (BENTO XVI, 2008).

São Bento também se dirigiu aos Abades que tinham o compromisso de orientar os discípulos, dizendo que o abade deveria ser “ao mesmo tempo terno e mestre severo (2, 24), um verdadeiro educador. Inflexível contra os vícios, é contudo chamado sobretudo a imitar a ternura do Bom Pastor (27, 8), a ‘ajudar e não a dominar’ (64, 8), a ‘acentuar mais com os fatos do que com as palavras tudo o que é bom e santo’ e a ‘ilustrar os mandamentos divinos com o seu exemplo’ (2, 12).

Para ser capaz de decidir responsavelmente, também o Abade deve ser homem que escuta ‘os conselhos dos irmãos’ (3, 2), porque, ‘muitas vezes, Deus revela ao mais jovem a solução melhor’ (3,3)”. Veja que são orientações para aqueles que se colocam na função de dirigir espiritualmente um pequeno rebanho, o qual, muitas vezes, pode ser a pequena comunidade que é a sua família.

A fé traduzida em obras 

Essa espiritualidade de São Bento, cuja fé precisa se traduzir em obras e estas, para agradarem a Deus, devem encontrar na vida de oração o seu sustento e alimento, essa forma de ser do monge no mundo, inspira a todos para que possamos corresponder à vontade de Deus nas nossas pequenas ações.

Tem um milagre de São Bento, dentre tantos que me chama a atenção, é o relato de São Gregório Magno, no livro Vida e Milagres de São Bento e retratado por Ricardo Sá (2005) no livro “São Bento: um monge caminha conosco”. Esse milagre foi sobre uma taça que se quebrou quando São Bento fez o sinal da cruz antes de beber o vinho. Os monges que convidaram São Bento para ser o diretor do Convento, depois quiseram matá-lo, porque não aceitavam as condições por ele impostas, pois queriam se manter na vida de pecado. E então os monges colocaram veneno na taça de cristal e, ao fazer o sinal da cruz antes de bebê-la, a taça se quebrou e, na hora, São Bento falou: “Que Deus onipotente tenha piedade de vós, irmãos: por que quisestes fazer isso comigo? Por acaso não vos disse antecipadamente que eram incompatíveis meus modos de proceder com os vossos? Ide e buscai um pai de acordo com vossos caprichos, porque, a partir de agora, de modo algum podereis contar comigo!” (SÁ, 2005, p. 22-23).

A cruz é sinal de salvação, redenção e libertação

A oração de São Bento por meio da cruz demonstra a sua fé acerca desse instrumento de Deus. A Doutrina Católica exalta a Santa Cruz. No nº 617 do Catecismo da Igreja Católica está previsto que “ ‘[…] Por sua santíssima Paixão no madeiro da cruz, mereceu-nos a justificação’ ensina o Concílio de Trento, sublinhando o caráter único do sacrifício de Cristo como ‘princípio de salvação eterna’. A Igreja venera a Cruz, cantando: crux, ave, spes única – Salve, ó cruz, única esperança”.

No nº 1505, “Comovido com tantos sofrimentos, Cristo não apenas se deixa tocar pelos doentes, mas assume suas misérias: ‘Ele levou nossas enfermidades e carregou nossas doenças’. Não curou todos os enfermos. Suas curas eram sinais da vinda do reino de Deus. Anunciavam uma cura mais radical: a vitória sobre o pecado e a morte por sua Páscoa. Na cruz, Cristo tomou sobre si todo o peso do mal e tirou o ‘pecado do mundo’ (Jo 1, 29). A enfermidade não é mais do que uma consequência do pecado. Por sua paixão e morte na cruz, Cristo deu um novo sentido ao sofrimento que, doravante, pode nos configurar com Ele e nos unir à sua paixão redentora”.

E no nº 1741 do Catecismo está escrito: “Por sua gloriosa cruz, Cristo obteve a salvação de todos os homens. Resgatou-os do pecado que os mantinha na escravidão. ‘É para Liberdade que Cristo nos libertou’ (Gl 5,1). Nele comungamos da ‘verdade que nos torna livres’”. Sendo assim, a Cruz do Senhor Jesus tornou-se sinal de salvação, redenção e libertação.

Vale dizer que, na Festa da Exaltação da Santa Cruz e na Sexta Feira da Paixão, canta-se: “Eis o lenho da Cruz do qual pendeu a salvação do mundo. Vinde adoremos”. No Cerimonial dos Bispos, promulgado pelo Papa João Paulo II (1984), está prevista a adoração à Santa Cruz com todo respeito. Veja: “69. A genuflexão, que se faz flectindo só o joelho direito até ao solo, significa adoração; pelo que é reservado ao Santíssimo Sacramento, quer exposto, quer guardado no sacrário; e à Santa Cruz, desde a adoração solene na Ação litúrgica de Sexta-feira da Paixão do Senhor até ao início da Vigília Pascal” (SILVA, 2024).

Relacionamento com Deus 

São Bento acreditava na força da Cruz do Senhor Jesus como no milagre descrito acima. É importante, nesse ponto, a história da descoberta da Cruz na qual Jesus morreu. Ela é relatada por Maria Milvia Morciano (2023), repórter do Vaticano, que conta que a mãe de Constantino, Santa Helena, viajou para a Terra Santa, nos anos de 326 e 328 d.C, em busca da Cruz verdadeira, e lá a encontrou em meio a outras duas cruzes, perto do túmulo de Jesus. Para distinguir qual era a Cruz de Cristo, levou uma mulher enferma para tocá-las, e esta foi curada com a Cruz de Cristo.

A espiritualidade de São Bento também era a espiritualidade de Jesus na Cruz. No Getsemâni, na noite anterior a Sua morte na Cruz, Jesus orou: “Meu Pai, se é possível, esta taça passe longe de mim! Todavia, não como eu quero, mas como tu queres” (cf. Mt 26,39). Veja que Jesus, mesmo na Sua humanidade, sentindo vontade de que aquele sacrifício fosse afastado, Ele ora ao Pai e pede para que seja feita a Sua vontade.

O Papa Bento XVI, sobre essa questão, afirma: “O Deus no abismo do seu amor, doando-Se a si mesmo, contrapõe a todas as forças do mal o verdadeiro poder do bem. Jesus pronunciou ambos os pedidos, mas o primeiro, ou seja, o de ser ‘salvo’, está amalgamado com o segundo, que pede a glorificação de Deus na realização da sua vontade; desse modo, o contraste no íntimo da existência humana de Jesus é conduzido à unidade” (2016, p. 146/147). E continua Graciane (2024): “E assim deve ser conosco. O contraste no nosso íntimo entre o sofrimento e permanecer na vontade de Deus deve nos conduzir à unidade interior que nos permite aguentar firme até o fim, na fé de que a Vitória chegará, aqui nesse mundo e/ou na eternidade. Em Cristo seremos sempre vitoriosos, não importa a cruz que carreguemos”.

E nessa linha dos ensinamentos de São Bento, é que os monges beneditinos da Abadia de Metten, por volta do século XVII, depois de questionados pelas autoridades locais, levadas ao Mosteiro diante da afirmação das feiticeiras da Baviera de que não conseguiam fazer maldades naquele Mosteiro por causa da presença de alguma Cruz naquele lugar, os monges constataram que o mosteiro tinha as paredes cheias de cruzes gravadas, e, na biblioteca do local, encontraram escritos por ordem do Abade Pedro, datados do ano de 1415, constando desenhos e escritos muito antigos, dentre eles o desenho de “São Bento tendo na mão direita um bastão em forma de Cruz. Acima do bastão estava o texto: CRUX SACRA SIT MIHI LUX NON DRACO SIT MIHI DUX. Da mão esquerda saía uma flâmula com as frases: VADE RETRO SATANA NUNQUAM SUADE MIHI VANA SUNT MALA QUAE LIBAS IPSE VENENA BIBAS” (SÁ, 2005, p. 34-35).

A espiritualidade da Cruz é a da entrega total por amor e obediência ao Pai, para que a vontade dele se cumpra na nossa vida. E terminemos com a oração acima, tão preciosa, conhecida como Oração de São Bento, para que se afaste de nós tudo aquilo que quer nos tirar da vontade de Deus, para que a nossa vida seja de oração em ação.

Leia mais

.:São Bento: orações milagrosas e santificadoras

 

Referências bibliográficas

BENTO XVI, Papa. Audiência Geral. 9 abr. 2008. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2008/documents/hf_ben-xvi_aud_20080409.html. Acesso em: 10 jul. 2024.BOVE, G. Tentação. LEXICON – Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003. p. 729.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola: Ave Maria: Paulinas: Paulus, Petrópolis: Vozes, 1999.

MORCIANO, Maria Milvia. As relíquias da cruz de Jesus, uma peregrinação de séculos entre fé e arqueologia. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-03/reliquias-cruz-jesus-peregrinacao-fe-arqueologia.html#:~:text=Maria%20Milvia%20Morciano%20%E2%80%93%20Cidade%20do,de%20salva%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20a%20terra. Acesso em: 10 jul. 2024.

RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. Tradução de Bruno Bastos Lins. São Paulo: Planeta, 2016.

SÁ, Ricardo. São Bento: um monge caminha conosco. São Paulo: Canção Nova, 2005.

SILVA, Graciane Apolônio. A cruz, o mistério que permeia a vida cristã. Disponível em: https://santuario.cancaonova.com/artigos-religiosos/a-cruz-o-misterio-que-permeia-a-vida-crista/#:~:text=Na%20cruz%2C%20Cristo%20tomou%20sobre,unir%20%C3%A0%20sua%20paix%C3%A3o%20redentora%E2%80%9D.
Acesso em: 10 jul. 2024.

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