No dia 9 de junho de 2017, segundo dia do Tríduo em honra ao Pai das Misericórdias, Dom Benedito Beni, bispo emérito de Lorena, presidiu a Santa Missa às 18h e através da homilia abordou a temática da Misericórdia de Deus para com os homens.
Prezados sacerdotes, caros seminaristas, irmãos e irmãs,
Encerramos a pouco a celebração do tempo pascal, cinquenta dias consecutivos. Encontramos-nos agora em um novo período litúrgico chamado tempo comum. Durante este período a liturgia nos mostra Cristo como missionário do Pai.
São Mateus no capítulo quarto do seu Evangelho resume a atividade missionária de Jesus dizendo que Ele percorria toda Galiléia ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino, curando toda doença e enfermidade do povo.
O Evangelho que acaba de ser proclamado nos mostra Jesus ensinando novamente no Templo de Jerusalém e, em seu ensinamento, Jesus revela a identidade íntima e profunda do Messias.
Irmãos e irmãs, os Judeus esperavam um Messias descendente do rei Davi que haveria de restabelecer o reinado de Davi, assim como Deus no Antigo Testamento através de Moisés realizou prodígios para a libertação de Israel da escravidão do Egito, o Messias também deveria realizar prodígios para restabelecer a soberania da nação expulsando os demônios. Jesus não nega que o Messias é descendente do rei Davi, mas isso constitui apenas a sua dimensão humana. O Messias possui uma identidade mais profunda, Ele possui uma origem divina e o próprio Davi citando o Salmo 109 afirmou e chamou o Messias de Senhor, portanto, de Deus.
Ele é o nosso salvador
Jesus quis mostrar claramente, irmãos e irmãs, que Ele é o Messias que veio não para inaugurar um reino político neste mundo, não para inaugurar um governo político. Ele veio para nos salvar e governar as nossas vidas. Por isso mesmo, a palavra Senhor significa Deus; significa aquele que governa a nossa vida. Professar Cristo o Messias como Senhor é realizar a profissão fundamental da nossa fé. Por isso mesmo, São Paulo escreveu no capítulo doze da primeira Carta aos Coríntios que ninguém pode dizer Jesus é o Senhor a não ser movido pelo Espírito Santo. Dizer Jesus é o Senhor não significa apenas fazer a confissão fundamental da nossa fé; Ele é Deus, Ele é o nosso salvador. Dizer Jesus é o Senhor significa fazer d’Ele o Senhor da nossa vida. Àquele que governa os nossos pensamentos, o nosso coração, a nossa liberdade, as nossas decisões, os nossos projetos de vida. Essa confissão fundamental da fé pela qual fazemos Jesus aquele que governa a nossa vida só é possível segundo São Paulo, quando nós somos movidos pelo Espírito Santo.
A primeira leitura desta missa, irmãos e irmãs, é muito bonita. Ela foi tirada do livro de Tobias, um livro do Antigo Testamento escrito no século segundo antes de Cristo. É um livro maravilhoso. É um livro, que nós podemos assim dizer, suave, que registra a vida de uma família judia no exílio na cidade de Nínive. Esta família era composta pelo pai Tobias, a mãe Ana e um filho também chamado Tobias. Era uma família fiel a Lei de Deus e, ao mesmo tempo, praticava as obras de misericórdia, até mesmo enterraram ocultamente aqueles judeus mortos, cujos corpos eram abandonados nas ruas. Mas esta família fiel a Deus conheceu também o sofrimento, a discriminação racial, a perseguição, as ameaças de morte e, finalmente, a cegueira do velho Tobias. E foi justamente na oração, irmãos e irmãs, que esta família judia encontrou força para permanecer fiel a Deus no sofrimento e ainda mais enfrentar o sofrimento com fé, com coragem, com a cabeça erguida.
A fidelidade de Deus é eterna
O livro de Tobias nos mostra, irmãos e irmãs, que a fidelidade de Deus é eterna, Ele está sempre do nosso lado, se muitas vezes Ele não nos livra do sofrimento, Ele sempre nos dá força para enfrentar o sofrimento com fé e coragem. Foi exatamente o que aconteceu com Jesus. Afirma a carta aos Hebreus que nas vésperas de sua morte, no Jardim das Oliveiras, Jesus orou derramando lágrimas; não orou de pé, como ousavam fazer os judeus, nem de joelhos para expressar humildade; afirma a carta aos Hebreus que Ele orou com o rosto colado à terra, gemendo e derramando lágrimas e o autor da carta aos Hebreus observa que Deus atendeu ao pedido de Jesus, não o livrou do sofrimento, mas lhe deu força enquanto homem para enfrentar, com coragem, o sofrimento.
O apóstolo Paulo sofria de uma doença que o humilhava. Paulo chama esta doença de um espinho de Satanás fincado na sua carne e Paulo afirma que por três vezes pediu ao Senhor que o libertasse daquele sofrimento. Deus não libertou Paulo do sofrimento, mas lhe deu coragem para enfrentar o sofrimento, com fé e coragem.
Essa é a grande lição do livro de Tobias: a fidelidade de Deus é eterna, Deus está sempre ao nosso lado, mesmo nas horas de sofrimento, mesmo nas horas de provações.
Deus nos olha com Misericórdia
Irmãos e irmãs, o tema específico, especial para a reflexão desta noite é o seguinte: Deus nos olha com Misericórdia. A misericórdia é um atributo tão essencial de Deus que o Papa Francisco escreveu um livro como título: o nome de Deus é misericórdia. O Antigo Testamento usa dois vocábulos para designar a misericórdia: o primeiro vocábulo é haramim, palavra da língua hebraica que significa amor materno. O amor de mãe é natural, o amor de mãe se inicia no ventre, é aquele amor que acolhe a vida, dá condições da vida de desenvolver, o amor de mãe é cheio de ternura. A mãe toma a criancinha em seus braços e a alimenta, não apenas com o seu leite, mas também com seu amor, com a sua ternura. Portanto, quando nós afirmamos que o nome de Deus é misericórdia, nós queremos dizer que Deus nos ama com o amor de mãe. Por isso mesmo o profeta Isaías coloca na boca de Deus essas palavras: pode uma mãe abandonar a criancinha que ela gerou em seu ventre; e o próprio Deus responde: ‘ainda que uma mãe abandone a sua criancinha Eu não te abandonarei’. Então essa verdade enche os nossos corações de consolação, de esperança, Deus é misericordioso, Deus nos ama com amor de mãe.
O Antigo Testamento usa ainda outro vocábulo para designar a misericórdia: a palavra hebraíca hesed, que significa amor voluntário; o amor de mãe é natural, mas existe um amor deliberado que nasce da nossa vontade. Para usarmos uma palavra do profeta Isaías é aquele amor que não se envergonha da carne do irmão, mesmo que seja uma carne enfraquecida pela pobreza e miséria. Uma carne desfigurada pela doença, uma carne manchada pelo pecado. Quando o irmão peca, nós não podemos atirar pedras, pois atirar pedras não muda o coração de ninguém, o que pode mudar o coração do pecador é a misericórdia, por isso mesmo, Deus quer não a perdição do pecador, mas a sua conversão e salvação. Deus sempre manifesta misericórdia para com o pecador.
A religião é o caminho que Deus percorre para vir ao encontro do ser humano
O maior ato da misericórdia de Deus foi a encarnação do Seu Filho para nos salvar. No capítulo terceiro do Evangelho de São João, Jesus afirma: ‘Deus tanto amou o mundo que entregou o Seu Filho’. Deus entregou o Seu Filho em primeiro lugar na encarnação. O amor aproxima as pessoas. Na encarnação de Seu Filho, Deus de tal modo aproximou do homem pecador que Ele mesmo se tornou homem, tornou-se um ser humano. Ir além no amor, ir além na misericórdia, não é possível. Mas Deus entregou também o Seu Filho na cruz pela nossa salvação.
O papa São João Paulo II afirmou no seu livro “Cruzando o limiar da Esperança” que se o Filho de Deus não tivesse morrido na cruz pela nossa salvação, o amor de Deus permaneceria sempre uma hipótese, sempre os homens iriam perguntar: será que Deus nos ama? Será que Deus não nos ama?; Mas o papa concluí: ‘depois que o Filho de Deus morreu na cruz para nos salvar, ninguém mais pode duvidar do infinito amor, da infinita misericórdia de Deus nosso Pai’. Mas Jesus, irmãos e irmãs, nos revelou o olhar misericordioso de Deus Pai não só na cruz, mas através de seus ensinamentos, Jesus nos revelou a natureza íntima de Deus de um Pai cheio de misericórdia que sai em busca do ser humano, sobretudo do pecador. Podemos dizer que Jesus de certo modo inverteu a noção de religião. A religião foi sempre concebida como um caminho que o ser humano percorre para ir ao encontro de Deus. Jesus mostrou que é ao contrário, a religião é o caminho que Deus percorre para vir ao encontro do ser humano, sobretudo ao encontro do pecador. E Jesus revelou esta natureza íntima de Deus que é a misericórdia, sobretudo em três parábolas registradas no capítulo quinze do Evangelho de São Lucas chamadas parábolas da misericórdia divina.
A primeira parábola fala do bom pastor que deixa as noventa e nove ovelhas no redil e sai a procura da ovelha perdida. Nesta parábola o pastor representa Deus e a ovelha perdida representa o pecador e o ensinamento da parábola é claro, se Deus não saísse em busca do pecador, ele permaneceria para sempre perdido, jamais seria encontrado, jamais seria salvo.
A segunda parábola é da mulher que perde em casa uma dráquima, uma moeda de prata e ela varre toda a casa até encontrar a moeda perdida. Neste caso, a mulher representa Deus, a moeda perdida o pecador, então a parábola mostra o cuidado com o qual Deus sempre procura o pecador até encontrar.
E a terceira parábola é a do filho prodigo, representada tão bem no mosaico aqui à frente; essa parábola revela, irmãos e irmãs, que Deus quando perdoa o pecador, Ele não lança na sua cara os seus crimes, os seus pecados, como nos mostra este mosaico. Deus perdoa o pecador acariciando, abraçando o pecador.
Irmãos e irmãs, a misericórdia revela que a lógica de Deus é diferente da lógica humana, do modo de pensar humano. A lógica humana é racionalista, é fria, é a lógica do dente por dente, olho por olho; quem erra deve pagar, mas a lógica de Deus não é a lógica legalista, fria da razão, é a lógica da misericórdia. E como conclusão da nossa reflexão nesta noite, vamos recordar mais uma vez o lema do Ano Santo da misericórdia que nós celebramos: Misericordiosos como o Pai. A misericórdia infinita de Deus para conosco pecadores deve nos impelir a exercer a misericórdia com o próximo, com o irmão. Amém.
Dom Benedito Beni
Bispo emérito da Diocese de Lorena