MÊS DA PALAVRA

Evangelhos: quatro histórias sobre o mesmo Jesus

Sabiamente, a Igreja sempre nos propôs um ritmo de celebração mensal, em concomitância com o Ano Litúrgico, para se tornar um guia de reflexão para alguns temas específicos e alimentar a espiritualidade do povo de Deus. O mês atual, setembro, é dedicado às Sagradas Escrituras. 

A motivação para tal gesto parte, em primeiro lugar, do respeito que a Igreja devota às Sagradas Escrituras. Segundo a Dei Verbum, “a Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor […] (DV, n. 21)”Além desse respeito, nesse mês também é celebrada a memória litúrgica de São Jerônimo, Presbítero e Doutor da Igreja.

Evangelhos: quatro histórias sobre o mesmo Jesus

“O mês atual, Setembro, é dedicado às Sagradas Escrituras.” | Foto ilustrativa: cancaonova.com

Jerônimo, nascido em Estridão, na Dalmácia, desde muito cedo, após ordenado sacerdote, dedicou-se ao estudo da Bíblia. Indo morar em Roma, recebeu o encargo de fazer uma revisão das traduções latinas da Sagrada Escritura. No avançar de sua vida, mudou-se para a Terra Santa e dedicou-se ao estudo, a tradução e a produção literária sobre os textos sagrados. É dele a celebre frase de que ignorar as Escrituras é ignorar Cristo, citada na segunda leitura do Ofício das Leituras, por ocasião da celebração de sua memória.

A frase acima citada de São Jerônimo nos demonstra a responsabilidade que temos diante da Palavra de Deus. Torna-se um prejuízo para a fé e a vivência cristã o desconhecimento das Escrituras. De modo muito especial, poderíamos pensar no quanto os Quatros Evangelhos se tornam fundamentais nessa questão. Se toda a Escritura é importante, maior relevo ainda devemos dar a eles, pois ocupam o primeiro lugar, “enquanto são o principal testemunho da vida e doutrina do Verbo encarnado, nosso salvador” (DV, n°18).  A Igreja nos ensina que os Evangelhos nos transmitem fielmente aquilo que Jesus fez durante sua vida em função da salvação dos homens. Os apóstolos, após a Ascenção de Jesus, iluminados pelo Espírito Santo e com uma compreensão mais apurada dos eventos, transmitiram a verdade da fé. E os autores sagrados, em contato com as tradições transmitidas pelos varões apostólicos, como verdadeiros autores, selecionaram o material disponível em vista às circunstâncias das comunidades cristãs nascentes (Cf. DV, n° 19). Ou seja, nos Quatro Evangelhos, encontramos em profunda sintonia a vida de Jesus e a vida da Igreja. Na vida de Jesus, nós, Igreja, encontramos a nossa própria identidade cristã.

Mas por que Quatro Evangelhos contando a “mesma história” de Jesus? 

É fato que, no tempo de Jesus e, principalmente, após Sua morte, desencadeou-se entre Seus seguidores o cultivo de Suas palavras. Com o passar do tempo, a morte das testemunhas oculares, além das necessidades provenientes da missão, da catequese e do culto nas primeiras comunidades cristãs, sentiu-se a necessidade de escrever a vida de Jesus. Já existia, juntamente com a tradição oral, vários textos fragmentários de maior e menor extensão. Motivados pelas necessidades apontadas acimas e pelo desejo de recordar a história de Jesus e manter o vínculo com Ele, em posse do material disponível e inspirados pelo Espírito Santo, os evangelistas empreenderam a linda tarefa de perpetuar a memória de Jesus na história da humanidade.

Marcos dedicou-se à escrita do primeiro Evangelho. Em seguida, Mateus e Lucas “trabalharam sobre o texto de Marcos e o reescreveram, com novos aspectos, em função das necessidades de suas comunidades”. João, por sua vez, formatou seu Evangelho a partir de tradições que circulavam em seu meio e segundo concepções teológicas próprias. Não bastava às comunidades receberem passivamente as tradições sobre Jesus. Elas sempre se esforçavam para completar e reelaborar essas tradições a partir da própria experiência. E para não se perderem nessa questão, os princípios de fidelidade e atualização guiavam os trabalhos dos evangelistas. Pelo primeiro princípio, garantia-se que o Jesus relatado era o mesmo que viveu entre os homens, morreu na cruz, ressuscitou e subiu ao Pai. Pelo segundo princípio, compreendia-se que os ensinamentos de Jesus não eram letras mortas, algo do passado, mas palavra atual do Jesus Ressuscitado, revitalizadas pelo Espírito Santo e capaz de iluminar a vida da comunidade

Percebe-se, então, que a multiplicidade de Evangelhos é fruto das releituras e reescritas da história de Jesus em vista das necessidades das comunidades, como nos apontou a Dei Verbum. Conforme Lohse, “é o único evangelho segundo um quádruplo testemunho: um testemunho que cada um dos quatros evangelistas oferece à sua maneira” [tradução nossa].  Por isso é muito importante estar sempre atento ao que cada evangelista tem a dizer sobre Ele. Em cada relato evangélico e a seu modo, encontra-se uma imagem viva e encantadora de Jesus a ser descoberta por aqueles que se aventuram na maravilhosa tarefa da leitura e da meditação da Palavra de Deus. 

Padre Ademir Pereira
Sacerdote da Comunidade Canção Nova

REFERÊNCIAS
1 DV – Constituição Dogmática Dei Verbum: sobre a revelação divina.
2 Cf. MONASTERIO, R. A; CARMONA, A. R. Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos. São Paulo: Ave-Maria, 2000. p. 36-37.
3 Ibid., p. 49.
4 Cf. MARGUERAT, D (org.). Novo Testamento: história, escritura e teologia. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2012. p. 450. 
5 Cf. MONASTERIO, R. A; CARMONA, A. R. op. cit., p. 49.
6 Cf. At 10,37-43.
7 Cf. Jo 16,12-13.
8 LOHSE, E. Introduccion al Nuevo Testamento. Madrid: Cristiandad, 1975. p. 130.
9 SCHNACKENBURG, R. Jesus Cristo nos Quatro Evangelhos. São Leopoldo: Unisinos, 2001. p. 28.

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