No artigo anterior foi considerado o título de ‘Maria Rainha’ na visão da Bíblia. Agora nosso artigo continua refletindo sobre este título expresso nos Padres da Igreja e confirmado no ensinamento dos Papas.
O texto limita-se a apresentar, de maneira sintética, parte da encíclica do Papa Pio XII, Ad Caeli Reginam, a saber ‘Para a Rainha do Céu’, publicada no dia 11 de outubro de 1954. A encíclica inicia com as seguintes palavras: “Desde os primeiros séculos da Igreja católica, elevou o povo cristão orações e cânticos de louvor e de devoção à Rainha do céu tanto nos momentos de alegria, como sobretudo quando se via ameaçado por graves perigos; e nunca foi frustrada a esperança posta na Mãe do Rei divino, Jesus Cristo, nem se enfraqueceu a fé, que nos ensina reinar com materno coração no universo inteiro a Virgem Maria, Mãe de Deus, assim como está coroada de glória na bem-aventurança celeste” (N. 1). A partir do n. 8 do documento Pio XII faz referência aos títulos de ‘rei’ que a Bíblia reconhece a Jesus Cristo: “Ele reinará eternamente na casa de Jacó” (Lc 1,32), será “Príncipe da Paz” (Is 9,6), e è “Rei dos Reis e Senhor dos senhores”(Ap 19,16).
A partir disso, a Igreja ‘povo fiel’, considerando que há estreita relação entre uma mãe e o seu filho, sem dificuldade reconheceu na Mãe de Deus a dignidade real sobre todas as coisas. Como confirmação, o documento cita, logo depois no n. 9, alguns textos da Sagrada Escritura, sobre os quais se refletiu no artigo anterior, que apontam para Maria, como Rainha. “Assim, baseando-se nas palavras do arcanjo Gabriel, que predisse o reino eterno do Filho de Maria (Lc 1,32-338) e nas de Isabel, que se inclinou diante dela e a saudou como ‘Mãe do meu Senhor’ (Lc 1,43), compreende-se que já os antigos escritores eclesiásticos chamassem a Maria ‘mãe do Rei’ e ‘Mãe do Senhor’, dando claramente a entender que da realeza do Filho derivara para a Mãe certa elevação e preeminência”.
Estas afirmações já ligam o testemunho da Bíblia com o testemunho da Tradição. Logo depois, então, a encíclica apresenta o testemunho de alguns Padres da Igreja, a partir do IV século.
A expressão ‘Padres da Igreja’ se refere a influentes teólogos e mestres cristãos, na grande maioria importantes bispos de igrejas cristãs primitivas (séculos II-VIII), cujas obras foram utilizadas como base da doutrina cristã. Estes ‘Padres’ chegaram a apresentar o Evangelho para culturas diferentes da cultura hebraica dos apóstolos, particularmente a cultura grega, latina e siríaca. Santo Efrém, da Síria (306-373), compositor de hinos e teólogo, “com grande inspiração poética, põe estas palavras na boca de Maria: ‘Erga-me o firmamento nos seus braços, porque eu estou mais honrada do que ele. O céu não foi tua mãe, e fizeste dele teu trono. Ora, quanto mais se deve honrar e venerar a mãe do Rei, do que o seu trono!”. Em outro passo, assim invoca Maria Santíssima: “…Virgem augusta e protetora, rainha e senhora, protege-me à tua sombra, guarda-me, para que Satanás, que semeia ruínas, não me ataque, nem triunfe de mim o iníquo adversário.” (N. 10).
São Gregório Nazianzeno (329-390), teólogo e Patriarca de Constantinopla, chama Maria “Mãe do Rei de todo o universo”e “Mãe virgem”, [que] deu à luz o Rei do todo o mundo”;. Prudêncio (348-410), originário do Norte da atual Espanha, considerado o maior poeta cristão da Antiguidade, diz que a Mãe se maravilha “de ter gerado a Deus não só como homem, mas também como sumo rei”. (N. 11).
Já numa homilia atribuída ao teólogo Orígenes de Alexandria (185-253), Maria é chamada por Isabel não só ‘Mãe do meu Senhor’, mas também ‘Tu, minha Senhora’. (N. 13). O mesmo conceito se pode deduzir de um texto de S. Jerônimo (347- 420), famoso tradutor da Bíblia dos textos originais para o latim. Ele expõe o próprio parecer acerca das várias interpretações do nome de Maria: “Saiba-se que Maria, na língua siríaca, significa Senhora”.
Igualmente e com mais decisão, se exprime depois o bispo de Ravena S. Pedro (406-450), apelidado de ‘Crisólogo’, a saber, ‘boca de ouro’, pelas belas homilias que proferia. Ele escreveu: “O nome hebraico Maria traduz-se
por ‘Domina’ em latim, a saber, ‘Senhora’: portanto o anjo chama-lhe Senhora para livrar do temor de escrava a mãe do Dominador, a qual nasce e se chama Senhora pelo poder do Filho”. (N. 14). Santo André Cretense (650-726), originário de Damasco, mas sucessivamente bispo na Ilha de Creta, atribui muitas vezes a dignidade real à virgem Maria. Escreve, por exemplo: “Leva [Jesus Cristo] neste dia da morada terrestre [para o céu], como rainha do gênero humano, a sua Mãe sempre virgem, em cujo seio, permanecendo Deus, tomou a carne humana”. E num outro texto: “Rainha de todo o gênero humano, porque, fiel à significação do seu nome, se encontra acima de tudo quanto não é Deus”. (N. 17).
Do mesmo modo se dirige S. Germano (496-576), bispo de Paris, à humildade da Virgem: “Senta-te, ó Senhora; sendo tu Rainha e mais eminente que todos os reis, pertence-te estar sentada no lugar mais nobre” e chama-lhe:”Senhora de todos aqueles que habitam a terra”. (N. 18). São João Damasceno (675-749), monge e sacerdote da Síria, proclama Maria “rainha, protetora e senhora” e também: “Senhora de todas as criaturas”. (N. 19)
Finalmente, S. Ildefonso (607-667), arcebispo de Toledo, resume quase todos os títulos de honra nesta saudação: “Ó minha senhora, minha dominadora: tu dominas em mim, ó mãe do meu Senhor… Senhora entre as escravas, rainha entre as irmãs”. (N. 20).
Pio XII, em seguida, considera que, recolhendo a lição desses e de outros inumeráveis testemunhos antigos, chamaram os teólogos a santíssima Virgem, rainha de todas as coisas criadas, rainha do mundo e senhora do universo. (N. 21)
“Porque a virgem Maria foi elevada até ser Mãe do Rei dos reis, com justa razão a distingue a Igreja com o título de Rainha”.
Por sua vez, os Papas julgavam obrigação sua aprovar e promover a devoção à celeste Mãe e Rainha com exortação e louvores. Sem citar os papas mais recentes, Pio XII recorda que, já no século VII, o Papa S. Martinho I (590-655) chamou a Maria “gloriosa Senhora nossa, sempre virgem”; o Papa S. Agatão (629-681), na carta sinodal enviada aos
Padres do Sexto Concílio Ecumênico, celebrado em Constantinopla, chamou-a ‘Senhora nossa, verdadeiramente e com propriedade Mãe de Deus’; e no século VIII, Gregório II (669-731), em carta a S. Germano, patriarca de Constantinopla, que foi lida entre as aclamações dos Padres do Sétimo Concílio Ecumênico, realizado em Niceia, proclamava Maria ‘Senhora de todos e verdadeira Mãe de Deus’ e ‘Senhora de todos os cristãos’. (N. 22).
Passando para época mais recente, Pio XII lembra que o Papa Sixto IV (1414-1484), querendo favorecer a doutrina da Imaculada Conceição da santíssima Virgem, chama a Maria ‘rainha sempre vigilante, a interceder junto ao Rei, que ela gerou’.
Do mesmo modo o Papa Bento XIV (1675-1758) chama a Maria “Rainha do céu e da terra”(N. 23). Pio XII conclui este item da encíclica citando S. Afonso de Ligório (1696- 1787), famoso fundador da ordem dos Redentoristas que, tendo presente todos os testemunhos dos séculos precedentes, pôde escrever com a maior devoção: “Porque a virgem Maria foi elevada até ser Mãe do Rei dos reis, com justa razão a distingue a Igreja com o título de Rainha”. Em outro artigo vamos continuar refletindo sobre a doutrina desta Encíclica, que nos apresenta, ao mesmo tempo, a realiza de Maria na Liturgia e na Arte, como também os argumentos teológicos que justificam o título de ‘Rainha’ dirigido a Maria, Mãe do Nosso Salvador. Por fim apresentaremos dados históricos a respeito da Solene Coroação de Nossa Senhora Aparecida como Rainha do Brasil.
Referências
IWASHITA, Pedro. A realeza de Maria na devoção da Igreja: fundamentos bíblico-teológicos. In: DELGADO, José Luiz Majella (coord.). A Realeza de Maria: I Congresso Mariológico de Aparecida. Aparecida: Santuário, 2004. p. 10-16.
MEO, Salvatore; DE FIORES, Stefano (org.). Dicionário de Mariologia. Tradução de Álvaro A. Cunha et al. São Paulo: Paulus, 1986.
PIO XII, Papa. Carta Encíclica ‘Ad Caeli Reginam’. 11 out. 1954. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_11101954_ad-caeli-reginam.html. Acesso em 14 jun. 2022.
Lino Rampazzo
Doutor em teologia e professor no Curso de Teologia da Faculdade Canção Nova – Cachoeira Paulista