“O Pai misericordioso”
Como é difícil para nós reconhecermos que Deus é misericórdia! Parece que quanto mais vivemos afastados, mais O desejamos, mas não sabemos “alcançar” o que queremos. Vivemos, então, num esforço contínuo de buscar em pessoas e coisas aquilo que é próprio de Deus. Veja bem, é natural do ser humano, assim dizem os estudiosos, que tendemos naturalmente ao transcendental. Mas existe algo tão transcendente como Jesus? Deus que se rebaixou, encarnou-se, autocomunicou-se e, ainda, mostrou o rosto do Pai. Existe alguém que pode preenchê-lo tal como Ele? Não. Teria inúmeros exemplos para lhe contar, inclusive o meu testemunho, porém, caminhemos com o texto. Quero lhe mostrar que a Misericórdia é a grande prerrogativa de Deus. Por isso eu lhe digo: viver a fé não é encontrar o alívio do sofrimento! Isso seria um grande reducionismo! Se assim você pensa, você está vivendo uma ilusão, e pior, depois, por fim, culpará a Deus! Infelizmente, ouvimos isso em muitos lugares e de maneira até sutil. E nossa fé vai se maculando com falsos conceitos e por um Cristo que se encaixa nos nossos gostos e quereres. Se você crê em Cristo ao seu modo, muito provavelmente você está adorando a si mesmo, ao seu grande ego que quer apenas o prazer. Em outras palavras, uma vida “light”, assim dizia o saudoso e servo de Deus padre Léo.
Na Missa do início do Conclave que o elegeu como Papa, o Cardeal Ratzinger fazia eco à exortação de São Paulo aos cristãos de Éfeso, quando lhes pedia que não andassem “abatidos pelas ondas e levados ao sabor de qualquer vento de doutrina…” (Ef. 4, 14). “Uma descrição muito atual! ─ dizia Ratzinger. Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decênios, quantas correntes ideológicas, quantos modos de pensamento! A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi não raro agitada por estas ondas – lançada de um extremo ao outro…”. O relativismo, isto é, o deixar-se levar ao sabor de qualquer vento de doutrina aparece como a única atitude à altura dos tempos atuais. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo, e que usa como critério último apenas o próprio “eu” e os seus apetites… Nós, pelo contrário, temos um outro critério o Filho de Deus, que nos dá o critério para discernir entre o que é verdadeiro e o que é falso, entre engano e verdade” (Homilia da Missa Pro eligendo Summo Pontifice, 18/04/2005). Ter fé é abandonar-se nos braços de um Pai, que é misericórdia. Que nos acolhe, compreende e, ao mesmo tempo, educa-nos para o caminho da retidão e coerência, ao caminho da verdade e da vida. Aqueles que experimentam a misericórdia de Deus, que se rendem ao seu amor, que se deixam atingir pelos raios da misericórdia, que penetram fundo, que respondem nossas inquietações, que fazem os ruídos interiores transformarem-se em mar calmo… Essas pessoas experimentam algo tão grandioso que não querem mais voltar atrás, ou seja, descobrem o que realmente sacia. Nós sabemos quando experimentamos Deus, por isso nossas palavras não alcançam. Podemos perceber o dinamismo de um encontro pessoal com Deus quando olhamos para o mosaico do Pai das Misericórdias.
O dinamismo da conversão e da penitência foi maravilhosamente descrito por Jesus na parábola do “filho pródigo”, cujo centro é “O pai misericordioso”: o fascínio de uma liberdade ilusória, o abandono da casa paterna; a extrema miséria em que se encontra o filho depois de esbanjar sua fortuna; a profunda humilhação de ver-se obrigado a cuidar dos porcos e, pior ainda, de querer matar a fome com a sua ração; a reflexão sobre os bens perdidos; o arrependimento e a decisão de declarar-se culpado diante do pai; o caminho de volta; o generoso acolhimento da parte do pai; a alegria do pai: tudo isso são traços específicos do processo de conversão. A bela túnica, o anel e o banquete da festa são símbolos desta nova vida, pura, digna, cheia de alegria, que é a vida do homem que volta a Deus e ao seio de sua família, que é a Igreja. Só o coração de Cristo que conhece as profundezas do amor do Pai pôde revelar-nos o abismo de sua misericórdia de uma maneira tão simples e tão bela. (§1439 – Catecismo da Igreja Católica).
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“Utinam hodie vocem eius audiatis: nolite obdurare corda vestra – Oxalá escuteis hoje a Sua voz! Não endureçais o vosso coração” (Salmo 95,7-8). É interessante meditarmos este Salmo, porque, diante da gravidade atual, o homem busca, a todo custo, a sua liberdade. De fato, a liberdade advém de Deus! Mas, como disse acima, nós caímos num reducionismo e pensamos que, por nós próprios, chegaremos a sentir uma liberdade tão transcendente quanto aquela que Deus nos propõe. Quando o nosso coração está endurecido pelo pecado, Deus não desiste de nós e nos dá muitas oportunidades de retorno a Ele. Às vezes, pela dor ou por um convite ao grupo de oração, por uma amizade que o eleva ou por algum livro. Como S. Edith Stein, na cidade de Bergzabern, perto de Spira (1921), que leu a autobiografia de Santa Teresa de Ávila, numa só noite, e exclamou: “Esta é a verdade!” (Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2005, n. 44, p. 34 à 37). Deus não desiste de nós, mesmo ateus, preguiçosos, traumatizados, feridos… Ele não desiste de nós, pois o Amor misericordioso de Deus não cansa nem se cansa. A prerrogativa de Deus, enfim, algo que pertence só a Ele, a grandiosíssima misericórdia.
Por fim, façamos memória do Salmo: “Miserere mei, Deus, secundum misericordiam tuam – “Ó Deus, tem piedade de mim, conforme a tua misericórdia” (Sl 51,3). E da Bula Papal, que nos leva a uma meditação mais profunda: “Do coração da Trindade, da intimidade mais profunda do mistério de Deus, brota e corre sem parar o grande rio da misericórdia” (Papa Francisco, Bula Misericordiæ Vultus, n. 25). O Salmo e a Bula papal nos colocam diante da nossa culpa, mas também da graça de Deus. A minha proposta não é explicar, exaustivamente e em detalhes, que a prerrogativa de Deus é a misericórdia. Creio que o mais importante é experimentá-la. Então, utilize este pequeno artigo para entrar em oração. Reze com as palavras que chamaram sua atenção ou, ainda melhor, abra sua Bíblia no Salmo 50 e mergulhe no oceano do coração de Deus.
Guilherme Razuk
Seminarista da Comunidade Canção Nova