LIBERDADE NO ESPÍRITO

Parresia: A coragem de se dizer a verdade

Paulo estava preso há cerca de dois anos, aguardando julgamento, enquanto seus perseguidores judeus tentavam sua condenação. O governador Festo, que simpatizara com Paulo e acreditava que sua prisão era injusta, arranjou um encontro entre o Apóstolo dos Gentios e o Rei Agripa. Ali, diante das autoridades e de mais de uma centena de pessoas, Paulo narrou seu testemunho de conversão: como, de perseguidor dos cristãos, tornou-se um deles, após encontrar-se com o próprio Cristo. O testemunho que dou até hoje, disse Paulo, não é outro: “que o Cristo devia sofrer e que, sendo o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, anunciaria a luz ao povo e aos gentios” (At 26, 23). Festo interrompeu Paulo, chamando-o de louco, ao ouvi-lo falar da ressurreição dos mortos, e, no fim das contas, o Rei Agripa disse: “Paulo, mais um pouco e, por teus raciocínios, farias de mim um cristão”. Com toda a liberdade e ousadia própria de um filho de Deus, Paulo replicou:

“Eu pediria a Deus que, por pouco ou por muito, não só tu, mas todos os que me escutam hoje vos tornásseis tais como eu sou, com exceção destas correntes!” (At 26, 29).

Quando penso em parresia, este é um dos primeiros exemplos que me vêm à mente. O verdadeiro cristão é livre, destemido, desassombrado, tem como prioridade de sua vida o anúncio do Evangelho e traz em seu íntimo esse desejo tão bem expresso por Paulo: que todos se tornem seguidores de Cristo, porque só assim serão verdadeiramente livres.

Imagem: Canva Pro – Chatkarenstudio

Pouco tempo antes do episódio narrado acima, Paulo nos deu outro belíssimo exemplo de parresia. O governador anterior a Festo chamava-se Félix, e era interesseiro: vivia atrás de meios de obter dinheiro, reconhecimento, influência. Como sua mulher, Drusila, era judia, mandou chamar Paulo e “ouviu-o falar sobre a fé em Cristo Jesus” (At 24, 24). Paulo, contudo, não embrulhou o Evangelho num papel brilhante e colorido: falou sobre a justiça, a castidade e o julgamento futuro. Festo, que ficou marcado na história como um homem violento, corrupto e inescrupuloso, ficou amedrontado e interrompeu Paulo, dizendo que em outra oportunidade voltaria a ouvi-lo.

Esses dois fatos da vida de Paulo ilustram bem esses dois aspectos fundamentais da parresia, que o Catecismo da Igreja Católica define como “simplicidade sem desvio, confiança filial, segurança alegre, ousadia humilde, certeza de ser amado”: se por um lado, há a liberdade e a ousadia de anunciar o Evangelho, sem medo de falar a verdade, sem remendos, concessões ou timidez, por outro há a caridade, elemento indissociável da pregação cristã: eu anuncio o Evangelho porque quero que as pessoas conheçam a Cristo e se salvem. Por isso Paulo queria que Agripa, Festo e os outros presentes se tornassem como ele, menos nas correntes, e por isso ele, certamente conhecedor dos atos censuráveis de Félix, falou-lhe sobre as virtudes que o governador precisaria adquirir para escapar da condenação eterna.

Creio que até aqui o texto tenha deixado claro o que é parresia. Não posso, entretanto, encerrá-lo antes de também dizer o que não é parresia. Estamos na era da opinião. Nunca tantos tiveram tanto espaço para dizer o que pensam, seja algo refletido ou irrefletido, verdadeiro ou falso, benéfico ou insidioso. Hoje parece impossível não ter uma opinião formada sobre tudo, como cantou Raul Seixas. Mais ainda: às vezes parece obrigatório opinar. Isso acontece no mundo artístico, no mundo político, mas também no nosso mundo cristão.

Imaginemos duas situações:

  • Alguém está rolando o feed de seu Instagram e aparece um corte de quinze segundos que vem com a legenda: “Grave! Padre diz um absurdo sobre a Eucaristia!”. A pessoa vê o vídeo e, escandalizada, comenta: “Sinto vergonha de chamar esse homem de padre. Como é difícil encontrar sacerdotes verdadeiramente fiéis ao Evangelho atualmente!” Imediatamente compartilha o vídeo nas suas próprias redes. Em seu coração, essa pessoa crê que agiu com parresia, em defesa da fé e do Evangelho.
  • Um padre realiza uma reunião na paróquia com todos os movimentos, para falar das orientações diocesanas a respeito da Campanha da Fraternidade. Naquele mesmo dia, à noite, um catequista que estava na reunião grava um vídeo falando sobre “a crise que vive a Igreja no Brasil”, que se preocupa com as plantas, mas não ensina que o verdadeiro sentido da Quaresma é penitência e conversão. O catequista, sem ter conversado previamente com o padre, coloca esse vídeo em seus canais no YouTube e no Instagram, envia para todos os seus contatos e grupos da Igreja e vai dormir com a consciência em paz, porque crê que agiu com parresia, em defesa da fé e do Evangelho.

Nem um nem o outro cristão desses exemplos pensaram bem nas consequências dos seus atos. Não temperaram seu desejo de dizer a verdade com duas virtudes irmãs pouco lembradas nessas horas: a prudência e o discernimento. Se assim tivessem feito, talvez a pessoa do primeiro exemplo se fizesse algumas perguntas antes de comentar a publicação dizendo que sentia vergonha do padre: Eu vi a pregação inteira? Será que a fala que eu vi está fora do contexto? Será que esse vídeo é real? Mesmo que seja real, ao comentar que tenho vergonha desse padre eu estou fazendo um bem? Algum bem pode resultar de eu ofender um sacerdote? A pessoa do segundo caso, se quisesse agir com prudência e discernimento, teria se perguntado, por exemplo quantas pessoas ficariam tão revoltadas com o padre por causa do seu vídeo que se afastariam da Igreja, abandonando até mesmo a Santa Missa e a confissão.

No fim das contas, nenhum dos dois parou para examinar qual o saldo de suas ações: dela resultou mais bem do que mal? Parresia é realmente isso que eu fiz ou apenas fui imprudente? Plantei a semente do Evangelho com amor ou difamei, ofendi, semeei cizânia, dividi? Sabemos que casos como esses infelizmente são comuns, e muitas das vezes as falas, os comentários, os vídeos são bem mais agressivos e incisivos do que os exemplos que dei.

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O padre Jonas Abib nos diz que agir com parresia é ter “um verdadeiro atrevimento no Espírito Santo”, mas que se traduz em primeiro lugar numa vida de oração frutuosa, intensa, e, por conta disso, transborda nos dons, nos sinais, no anúncio eficaz da riqueza do Evangelho. Para se ter a verdadeira parresia, portanto, é necessário rezar e rezar muito. Dessa intimidade com Deus nascem a liberdade e a coragem de anunciar a verdade, que não se acovarda diante dos poderosos nem diante dos riscos à própria vida, mas que não se limita a ser mera denúncia ou acusação: é o anúncio vibrante e cheio de Caridade de Cristo, que ressuscitou e que nos propõe vida nova, para sermos livres de todo o pecado.