Um termo hebraico a serviço de todos
Convém contextualizar o termo hesed à família de palavras em hebraico que remete a três raízes: hânan, râham e hâsad. Conjuntamente aparecem 369 vezes, isto sem considerar os textos que não correspondem ao original hebraico1. Os significados destes três termos no Antigo Testamento (AT) convergem para a tradução como “misericórdia”, mas devido a riqueza e complexidade semântica aparecem, dependendo do contexto e tradução como “bondade”, “benignidade”, “solidariedade”, “graça”, “lealdade”, “agir lentamente”, “amor constante”, “ter misericórdia de”, “ser gracioso”, “misericordioso”, “favor”, “sentimento fraternal e maternal”, “terna misericórdia”, “devoção” e “generosidade”. Quanto a procura da etimologia do termo hesed, chega-se ao conceito de snaith que no AT tem o significado de “intensidade” e “agudeza”2.
Focalizando mais o conceito hesed pode-se afirmar que sua riqueza encontra-se testemunhada nas Sagradas Escrituras, pois, como Povo de Deus os hebreus experimentaram e viveram da piedade e misericórdia do Senhor, isto desde os primórdios de sua formação (cf. Ex 34,6). Em sua revelação, o Deus de Israel sempre tratou com compaixão o Povo eleito, preferindo a misericórdia do que a ira merecida (cf. Os 11,8s).
Frente os pecados do povo, Deus não se cansa em revelar livremente a sua imensa misericórdia3.
Por isso pode-se afirmar que a rica e longa história do Povo de Deus se entrelaça à revelação e experiência com a misericórdia divina harmonizada à sua justiça, embora a ultrapasse muitas vezes em prol do Povo; desta forma a misericórdia fez história de salvação pessoal e comunitária com reflexos sociais.
Por iniciativa divina, o Deus misericordioso fez continuamente Aliança com o Povo por Ele próprio formado e eleito, não obstante ter muitas infidelidades. Também como prova da compaixão divina, quando pecavam, por diversas vezes houve um envio profético, para serem exortados a recorrer à misericórdia divina (cf. Is 1,18; 51,4-16); a fim de renovarem a Aliança com Deus (cf. Ne 9); buscarem ao Deus Esposo compassivo e paciente para com a falta de amor da Amada (Povo) (cf. Jr 31,20). A experiência histórica do Êxodo também frutificou em obras e palavras divinas, devido a misericórdia (hesed) de Deus, o qual ouve com compaixão o clamor do povo sofredor e assim decide libertá-los do Egito, mesmo sabendo que poderá ser traído (cf. Ex 3,7; 34).
Uma misericórdia paterna que considera e trata Israel como filho primogênito (cf. Ex 4,22), a ponto de triunfar sobre a justiça, sem contradizê-la, seja frente às misérias de membros desconhecidos, ou de um rei David, que peca e se arrepende profundamente (cf. Sam 11; 12; 24,10); o descendente Salomão recorre sabiamente à misericórdia pela oração (1Sm 8,22-53) e tantos patriarcas, rei, profetas e outros membros do Povo de Deus ou demais povos4.
Na sua Encíclica consagrada à misericórdia divina, S. João Paulo II, partilha da seguinte forma a relação de misericórdia e justiça: “O amor condiciona, por assim dizer, a justiça, e, em última análise, a justiça serve a caridade. O primado e a superioridade do amor em relação a justiça – ponto característico da Revelação – manifestam-se precisamente através da misericórdia”5.
Na esteira da Revelação veterotestamentária a misericórdia Encarnada – Jesus Cristo, não veio trazer tantos conceitos novos, mas como escreveu Bento XVI ao discorrer sobre o amor, a novidade é mais profunda e testemunhal: “A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas ideias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos – um incrível realismo [inclusive hesed]6”.
Quando hesed e os outros termos foram traduzidos para o Novo Testementos eles ganham em sua riqueza polissêmica outras variantes a saber: “Haurindo seu vocabulário na Bíblia dos LXX, ele faz grande uso dos termos derivados das raízes eleein (“ter piedade”), oikteirein (“ter compaixão”), kharis (“graça”) e splankhna (“entranhas”, mas sobretudo “compaixão”) – aqueles mesmos que a tradução grega utilizava para verter as três raízes hebraicas evocadas acima”7.
No Evangelho de S. Lucas encontra-se no seu princípio, a manifestação da Boa Nova misericordiosa pelos lábios do castigado Zacarias e da agraciada Virgem Maria, porque tudo ocorreria devido a expansão da misericórdia, fidelidade do coração de Deus misericordioso para com o povo e em memória aos antepassados (cf. Lc 1,50.80).
Com maior profundidade e simplicidade Cristo revela plenamente a essência misericordiosa de Deus Uno e Trino, por meio de atos, palavras e sinais. Dentre tantas Parábolas, a do Filho pródigo, ou do Pai misericordioso permite uma analogia que remete às Alianças rompidas por parte de Israel, mas também demonstra o Evangelho da misericórdia com abrangência pessoal, comunitária e universal, pois quem não se pode colocar n`Aqueles braços que acolhe e restaura?8.
Como apóstolo da misericórdia divina, S. João Paulo II fez também referência ao tempo hebraico: “A fidelidade a si próprio por parte do pai – traço característico já conhecido pelo termo do Antigo Testamento “hesed” – exprime-se de modo particularmente denso de afeto”9.
Ainda sobre a Parábola, pode-se afirmar que bem sintetiza o núcleo do Evangelho da misericórdia no Novo Testamento, pois é capaz de demonstrar, em meio a riqueza de mensagens possíveis, o nexo entre a compaixão e verdade, quando unidas colocam-se a serviço da restauração da vida e dignidade humana, “pois este meu filho estava morto e voltou a vida, estava perdido e foi reencontrado” (Lc, 15,24)10.
No decorrer desta Encíclica, Divis in Misericordia, S. João Paulo II comunicou uma teologia simples e profunda sobre a misericórdia (hesed), centrada no mistério pascal.
O termo misericórdia é plural e comunica que a Aliança com Deus se dá por laços de generosidade e por isso serve de grande auxílio para o convívio e a nova evangelização. A misericórdia aponta para a graça batismal (cf. Tt 3,5); está presente na bem aventurança (cf. Mt 5,7); faz parte daquela ordem divina capaz de assemelhar os filhos ao Pai das misericórdias (cf. Lc 6, 36); ajuda no aprendizado constante que supera os sacrifícios antigos e não pode faltar aos novos (cf. Mt 9,13); aponta para a necessidade de perdoar e se preparar para a misericórdia final (cf. Mt 6,12; Tg 2,12-13) e diz de uma virtude indispensável e urgente aos relacionamentos (cf. Ef 4,32; 1Pd 3,8).
Por fim, a misericórdia está na essência da salvação (justificação) e como riqueza teológica tornou-se também ponte de comunhão para o Ecumenismo, como se percebe entre Católicos e Luteranos: “A mensagem da justificação nos remete de forma especial ao centro de testemunho neotestamentário da ação salvífica de Deus em Cristo: ela nos diz que, como pecadores devemos nossa vida nova unicamente à misericórdia perdoadora e renovadora de Deus, misericórdia esta com a qual só podemos ser presenteados e que só podemos receber na fé, mas que nunca – de qualquer forma que seja – podemos fazer por merecer”11.
Pe. Fernando Santamaria
Comunidade Canção Nova
1 CERBELAUD, Dominique. “Misericórdia”. In Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Loyola, 2004, p. 1150.
2 HOAD, J.W.L. “Misericórdia”, “Misericordioso”. In O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 1054.
3 BAUER, Johannes Baptist. “Misericórdia”. In Dicionário. Bíblico-Teológico. São Paulo: Loyola, 2000, p. 265.
4 Cf. Dives in Misericórdia 4.
5 Dives in Misericórdia 4.
6 Deus caritas est 12.
7 CERBELAUD, Dominique, op.cit., p. 1151.
8 Cf. Dives in Misericórdia 5.
9 Dives in Misericórdia 6.
10Cf. Dives in Misericórdia 6.
11 DECLARAÇÃO CONJUNTA SOBRE A DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO (on line), 1999. Disponível em www.vatican.va.