Uma imagem muito evocativa do progresso na vida espiritual é a de alguém saindo da praia e avançando para águas mais profundas. A praia é o lugar da segurança e, portanto, da imaturidade na fé. Na praia não me arrisco: meus pés estão sentindo a firmeza do chão e posso divertir-me com o melhor dos dois mundos. De um lado, a doçura e o encanto das ondas chocando-se contra o meu corpo me dão uma amostra do que é o mar e toda a sua vastidão e imponência; do outro, sei que ainda estou sobre solo seguro, e se eu me sentir arrastado para o grande e desconhecido oceano, basta andar alguns passos para estar de volta ao meu pequeno e conhecido mundo.
Dando alguns passos além na metáfora das águas mais profundas, o diácono Nelsinho Corrêa escreveu esses versos, que foram imortalizados na voz rouca do Monsenhor Jonas Abib: “Não dá mais pra voltar, o barco está em alto mar”. Eles transmitem essa necessidade que temos de abandonar o mundo conhecido até que não seja mais possível ver “o porto que era seguro”. Não há como crescer na fé sem levar a sério essa empreitada, sem “abandonar as coisas de criança”, como disse São Paulo. Enquanto permanecermos na praia brincando com as ondas, teremos que beber leite, porque não seremos capazes de suportar alimento sólido.
Espiritualmente falando, permanecer na praia ou manter o barco próximo ao porto seguro é tentar estreitar o relacionamento com Deus sem se desapegar das coisas do mundo, só que isso, como nos ensina o próprio Cristo, é impossível. A vida do cristão é exigente: não podemos servir a dois senhores, não somos dignos de Cristo se amamos pai, mãe, filhos mais do que a Ele, quem põe a mão no arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus. É necessário romper com tudo aquilo que humanamente nos dá segurança, firmeza, tranquilidade, e mergulhar no desconhecido, reconhecendo que hoje somos incapazes de enxergar, “vemos como por um espelho, confusamente”, mas chegará o tempo em que veremos face a face, com clareza.
Este espelho são os nossos sentidos. Eles nos revelam confusamente quem é Deus e a partir disso estabelecemos nosso relacionamento com Ele. O que suplico a Deus é que Ele conforte o meu coração, espante minha tristeza, me encha de júbilo e alegria? Com o tempo, é só isso que aprendo a esperar Dele, como uma criança que cai tentando andar e fica esperando que agora seu pai segure sua mão para não correr mais riscos. Ora, se o pai fizer isso, a criança parará de chorar, mas não aprenderá a caminhar. Nunca deixará de ser criança. Eu cultivo um relacionamento com Deus em que Ele é o grande Senhor que sempre vai me mostrar sinais visíveis de sua bondade, como curas, milagres, prodígios? A consequência disso é que só caminharei com Ele quando houver curas, milagres e prodígios.
Se queremos chegar a uma terra desconhecida, nos ensina São João da Cruz, precisamos andar por caminhos igualmente não conhecidos e desacostumados. Se meu louvor a Deus só brota quando meu coração se enternece ao ouvir uma música num ritmo certo, numa cadência adequada, preciso exercitar-me no louvor quando o coração está frio, insensível ao mistério divino, no silêncio, no escondimento de todas as coisas.
Algumas vezes condicionamos tanto a nossa fé aos nossos sentidos que, para que ela desperte e abramos nossos ouvidos a Deus precisamos:
a) da data certa (“toda Quaresma meu coração se volta para Deus”, ou “na festa da padroeira Deus fala comigo de modo especial”);
b) do pregador certo (“Estou precisando muito ouvir fulano de tal para retomar meu caminho. Ele fala de um jeito que toca meu coração”); e
c) até do lugar certo (“Acho que só quando eu for para um Acampamento de Oração na Canção Nova vou realmente abandonar algumas coisas do homem velho/ da mulher velha”).
Muitas vezes sem termos consciência disso, determinamos como Deus deve agir em nossa vida e até que ponto Ele pode entrar em nossa alma, mas São João da Cruz nos ensina que o caminho é justamente o oposto: “O progresso da alma é maior quando caminha às escuras e sem saber”, porque então é Deus “o mestre e guia deste cego que é a alma”. Quem se guia pelos sentidos é apenas isso: guia de si mesmo. Quem se deixa conduzir às escuras, sem nada saber, aceita que Deus seja seu guia, e, não escolhendo nada – nem por onde ir, nem quando, nem como – escolhe o tudo.
Continuarei amando o tempo quaresmal, as festas da padroeira, mas é no hoje, mesmo que seja “apenas” um Domingo do tempo comum, que deixarei Deus me guiar, que me esforçarei para colher os frutos daquilo que me parece insosso e sem vida. Continuarei ouvindo os pregadores que me falam ao coração, mas quando estiver na Santa Missa, ouvindo a homilia daquele padre que me parece tão sem inspiração, pedirei a graça a Deus de colher os frutos de conversão, ainda que eu não sinta nada. Por fim, continuarei desejando visitar a Canção Nova, ou Aparecida, ou tantos outros lugares santos que levam as pessoas a se encontrar com Deus, mas vou me esvaziar de toda expectativa, de toda imaginação, de toda sensibilidade, para permitir que mesmo naquele sacrário mais simples, da capela mais simples, da cidade mais simples, eu deixe o Rei dos Reis, o Senhor dos Senhores reinar em minha alma.
O que é sabedoria para o mundo é loucura para Deus, e o que é loucura para o mundo é sabedoria para Deus, ensina São Paulo. Por isso mesmo, a aparente segurança da praia é uma armadilha tentadora, mas perigosíssima, pois, como um potente anestésico, deixa-nos em torpor, nem lá, nem cá. O aparente risco de aventurar-se no imenso mar, por outro lado, contra toda lógica do mundo, é o único caminho seguro, onde a alma anda “às escuras, segura”.
Não tenhamos medo de avançar para águas mais profundas. Não tenhamos medo da noite escura, que, para aqueles que perseveram, é “mais amável que a alvorada”, porque junta o amado (Cristo) com amada (a alma).