“Honra pai e mãe”
Estamos em Jaboticabal, fundada em 1778. Em 1874, a população local era de 5.269 habitantes, e entre eles havia uma mulher de nome Gertrudes Vaz e sua filha, que tinha nascido cega. Gertrudes Vaz tinha um irmão católico e que participava constantemente de peregrinações ao local onde muitos brasileiros já presenciavam milagres operados sob a intercessão de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Malaquias não escondia as mudanças que aquele lugar causava em sua vida. Dá até para imaginar a paz inquieta que o irmão de Gertrudes expressava toda vez que voltava daquela peregrinação, onde podia ver de perto a imagem pescada nas águas do Rio Paraíba do Sul.
De tanto ouvir o tio narrar os acontecimentos presenciados por ele e provavelmente experimentados também, a menina, que sequer tinha visto a luz do mundo, certamente já sentia crescer dentro de si um amor incondicional por Nossa Senhora. E cada vez que sentia a alegria de Malaquias, ao voltar da terra da Mãe de Milagres, devia aumentar a certeza de que no mundo não existem só sons e escuridão.
Gertrudes e a menina eram muito pobres, e mesmo sem enxergar a pobreza, a garotinha já sabia o que era viver da providência diária, tamanha carestia que batia a porta todos os dias.
“Não vos preocupeis com coisa alguma, mas, em toda ocasião, apresentai a Deus os vossos pedidos, em orações e súplicas, acompanhadas de ação de graças. E a paz de Deus, que supera todo entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos no Cristo Jesus”. (Fl 4,6-7).
A menina sentia a dificuldade enfrentada por ela e sua mãe, mas em seu coraçãozinho já treinado pela fé havia a coragem e o desejo de experimentar os milagres que tanto o tio Malaquias descrevia. Até que ela decidiu fazer o pedido a dona Gertrudes, para irem também em peregrinação à cidade da Mãe de Milagres.
Imagina uma mãe, sem recursos financeiros, ouvir de uma filha cega de nascença um pedido tão difícil de se realizar. Elas estavam há, pelo menos, 468 quilômetros de distância de Aparecida. Não tinham dinheiro para custear a condução, e se fossem fazer a viagem toda a pé, gastariam, pelo menos, 100 horas de caminhada, sem interrupções. Aos olhos dos que leem obstáculos assim, a façanha era humanamente impossível. Mas aos olhos da menininha, a visão era outra, repleta de fé e devoção, cheia de desejo por milagre e confiança na Divina Providência.
“O meu Deus suprirá todas as necessidades de vocês, de acordo com as suas gloriosas riquezas em Cristo Jesus” (Fl 4,19).
Não foi preciso muita insistência para convencer Dona Gertrudes a aceitar o desafio de fé. A mãe da menina cega confiou na Virgem Aparecida e decidiu partir de mãos dadas com a garotinha. Sem dinheiro e com muita coragem, elas se puseram a caminho.
Trocaram o refúgio e a segurança da casinha simples de Jaboticabal pelo desabrigo e insegurança da estrada. Algumas horas de caminha e todo corpo pede água e comida. E se o sol for escaldante, a pele arde, o suor escorre nos olhos e faz queimar a vista. Fico a pensar como foi o primeiro pedido de esmola para se manterem no propósito de chegar à casa da Mãe de Milagres. Até hoje, muitos se perguntam como é possível alguém sair das trevas e descobrir o colorido das flores, o sorriso nos lábios, a lágrima nos olhos e o brilho da luz que ilumina as manhãs do mundo.
Os relatos dessa história dão conta de que as duas, mãe e filha, caminharam semanas a fio sob sol e chuva, sob calor e frio na estrada que levava Jaboticabal a Aparecida, no caminho que levava as trevas dos olhos à luz do amor materno, impossível de descrever por homens de pouca fé. As 100 horas ininterruptas de caminhada, que dariam pouco mais de quatro dias de viagem, se transformaram em mais de 2.160 horas de pé na estrada e ao menos três meses de luta, dor e lágrimas, que mãe e filha partilharam.
Você consegue imaginar o que representou para as duas essa peregrinação? Tantas mães e filhas hoje em desarmonia, capazes de humilhar uma a outra, capazes de dizer palavras duras e até mesmo de não se falarem ou abandonarem o amor e desistirem de viver juntas amizade, filiação e maternidade.
Fico a pensar como seria importante para pais e filhos um caminho de fé como esse experimentado por dona Gertrudes e sua menina, de Jaboticabal a Aparecida. Nem precisava ser tão intenso, dolorido e humilhante assim. Creio que uns 30 quilômetros de total dependência uns dos outros, numa estrada deserta de solidariedade, carente de esperança e seca de amor, seriam capazes de transformar relacionamentos. Quantos desentendimentos seriam desfeitos, quantas lágrimas seriam enxugadas e quantos olhos se abririam para a verdade e a verdadeira vida!
“Filhos, obedecei aos vossos pais, no Senhor, pois é isso que é justo. “Honra pai e mãe” –
tal é o primeiro mandamento, com uma promessa “para que sejas feliz e gozes de longa vida
sobre a terra”» (Ef 6, 1-3)
No parágrafo 2197 do Catecismo da Igreja Católica, aprendemos: “Deus quis que, depois de Si, honrássemos os nossos pais, a quem devemos a vida e que nos transmitiram o conhecimento de Deus. Temos obrigação de honrar e respeitar todos aqueles que Deus, para nosso bem, revestiu da sua autoridade.”
E foi no respeito mútuo de mãe e filha, cada uma identificando o limite da outra, que elas se aproximavam do fim do trajeto. A estrada estava terminando e todo o sofrimento para realizar o desejo de chegar à casa da Mãezinha Aparecida também. E depois de várias semanas de viagem, elas estavam a apenas alguns quilômetros da Basílica Velha.
Foi quando aconteceu o maior milagre de todos experimentados na viagem! A menina expressa com serenidade e simplicidade que lhe são características: “Olha, mãe! Aquela não é a igreja de Nossa Senhora Aparecida?”.
Dá para imaginar a emoção dessa mãe? Dá para mergulhar no interior de quem viu a filha nascer sem visão, pedir para vir a Aparecida e, antes mesmo de chegar à Basílica, tocar no milagre da cura? O coração de mãe não se engana, e mesmo recebendo uma proposta absurda de deixar Jaboticabal e caminhar tantos dias, ele não mudou o compasso, porque acreditava na intercessão de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
A emoção tomou conta da mãe e devota. E, certamente, com os olhos encharcados de lágrimas, Dona Gertrudes faz a pergunta, com a certeza da resposta da filha. “Minha filha, você está enxergando?”
A menina, que depois de ter como primeira imagem do mundo a Basílica de Nossa Senhora, exclama, certamente admirada com a natureza que cercava a construção: “Perfeitamente, mamãe! De repente, veio uma luz que clareou a minha vista”. Ali, atenta à alegria e vibração da filha, Dona Gertrudes percebeu que todo o sacrifício que viveram nos últimos meses tinha valido muito a pena. Impossível para mim e você não entrarmos juntos com Mãe e filha –agora curada – na Basílica Velha e, de coração agradecido, nos ajoelharmos com elas aos pés da Mãe de Milagres, e rezar por esse fato tão marcante na vida de tantas pessoas. Milagre reconhecido pelo Vaticano e que comprova o tamanho da intercessão de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
Retornando para Jaboticabal, mãe e filha se tornaram grande inspiração e fizeram crescer a devoção mariana naquele lugar. Tanto que foi construída uma capela, que depois se tornou a Igreja de Nossa Senhora em Jaboticabal, a segunda erguida no Brasil em devoção a Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
E essa é só uma das inúmeras histórias que aconteceram ao longo desses 304 anos de devoção a Nossa Senhora Aparecida. E não duvidemos, porque eles continuam a acontecer com cada filho da Mãe de Milagres e padroeira do nosso Brasil. Basta apenas que confiemos nossas súplicas na certeza de que vai prevalecer sempre o amor, a misericórdia e a vontade do nosso Pai.
Wallace Andrade
Jornalista e Escritor
Autor do livro ‘Mãe de Milagres-Nossa Senhora Aparecida’.