COMBATE

A luta espiritual segundo São Bento 

O mau uso da liberdade ocasiona o distanciamento de Deus e a imersão no abismo escuro do mal

Ao refletirmos sobre a nossa natureza, a nossa relação com as pessoas e principalmente com Deus, nos deparamos com a realidade da nossa vida antes e depois do pecado. Por consequência da marca do pecado, travamos uma batalha constante dentro de nós, como duas forças contrárias que se digladiam. 

:: É na fraqueza que se esconde a grandeza de Deus

Vivemos este drama porque a nossa natureza foi ferida. Por isso, enquanto nosso coração, nossa alma, todo nosso ser anseia pelas coisas celestes, pois somos obras das mãos de Deus, ao mesmo tempo a força do mal insiste em nos afastar do amor e da alegria que nos fazem verdadeiramente felizes. 

Esse é o empenho do inimigo de Deus. Uma vez que conseguiu nos ferir, ele não desiste um só momento em nos levar à perdição, mesmo sabendo que já é um derrotado. Neste sentido, o próprio Jesus nos advertiu: “Disse-vos estas coisas para que tenhais paz em mim. No mundo, tereis tribulações. Mas, tende coragem! Eu venci o mundo!” (Jo 16,33)

Muitos são os santos e mestres da espiritualidade que nos ajudam a compreender a como crescer nesse processo da luta espiritual, dentre eles São Bento, a quem, neste mês de julho, fazemos memória e contamos com a sua intercessão, principalmente nos momentos mais difíceis no confronto contra as forças do mal. 

A luta espiritual no contexto bíblico 

A reflexão sobre a luta espiritual nos remete imediatamente a um confronto, uma briga de forças. Podemos concluir que um dos lados do confronto, ao final, vencerá. E no contexto da luta espiritual, sabemos que, dentro de nós, existe a força do bem, a força que provém da natureza daqueles que vieram das mãos de Deus, obras divinas e belas. Somos parte desta obra. Nossa natureza é bela, pois nada que provém das mãos de Deus pode ser de natureza má.

Por outro lado, sabemos de toda a história da queda dos nossos primeiros pais, Adão e Eva. O homem prova do amargor da maldade na qual estava desprovido. Isso porque não usou de sua liberdade da forma que deveria. Aqui está a chaga que se abre na existência humana: o mau uso da liberdade ocasiona o distanciamento de Deus, e a imersão no abismo escuro do mal.

Podemos tomar a Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II Gaudium Et Spes sobre a Igreja no mundo atual no número 13: “Estabelecido por Deus num estado de santidade, o homem, seduzido pelo maligno, logo no começo da sua história, abusou da própria liberdade, levantando-se contra Deus e desejando alcançar o seu fim fora dele. Tendo conhecido Deus, não lhe prestou a glória a ele devida, mas obscureceu-se o seu coração insensato e serviu à criatura, preferindo-a ao Criador”. O estado de santidade é aquele ao qual brilhava no homem de forma pura e bela, ou seja, o estado iluminado no qual o ser humano era portador em sua natureza.

Aqui, adentramos no grande drama do ser humano. Uma natureza que antes era portadora de beleza e pureza, porém marcada pelo pecado, e por isso vive a constante luta interior e exterior, proveniente da investida do demônio, que, insistentemente, quer fazer perder o ser humano do caminho em direção à salvação. A Gaudium Et Spes continua com esta bela exposição no número 13: “O homem encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E assim, toda a vida humana, quer singular, quer coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Mais: o homem descobre-se incapaz de repelir por si mesmo as arremetidas do inimigo: cada um sente-se como que preso com cadeias. Mas o Senhor em pessoa veio para libertar e fortalecer o homem, renovando-o interiormente e lançado fora o príncipe deste mundo (cf. Jo 12,31), que o mantinha na servidão do pecado. Porque o pecado diminui o homem, impedindo-o de atingir a sua plena realização.

Em muitos momentos, na Sagrada Escritura, tocamos na constante luta do ser humano em se manter de pé na fidelidade a Deus perante os momentos de investida do mal. Por exemplo, quando vemos a figura do Rei Davi, homem de Deus, mas que não foi capaz de se manter firme e se deixou levar por sua fraqueza ao cair no pecado da luxúria, do adultério e do assassinato (2 Sm 11-12). O Livro de Jó, que mostra a incansável investida do maligno, para que não nos mantenhamos fiéis. Na figura de Jó, nos enxergamos como combatentes que, por vezes, caem, mas que se erguem pela força que brota do interior, a força que não se cansa em conduzir na direção d’Aquele que nos criou por amor, e por amor não permite que sejamos tentados acima de nossas forças.

Após o batismo no Rio Jordão, Jesus também foi tentado no deserto. Ele se permitiu ser tentado para nos mostrar que a força para vencermos está no poder da oração e da Palavra. Além disso, Jesus nos ensina que, somente n’Ele temos forças para vencer: “Disse-vos estas coisas para que tenhais paz em mim. No mundo, tereis tribulações. Mas tende coragem! Eu venci o mundo!” (Jo 16,33). Sabemos que o ápice da vitória de Jesus sobre o maligno e sua ação foi na Cruz. Mas ainda enquanto peregrinos neste mundo, devemos nos empenhar no combate, porque mesmo o inimigo sendo derrotado, ainda investe contra nós.

São Paulo, por diversas vezes, em suas cartas, adverte-nos e orienta sobre a luta espiritual que travamos. Na sua Carta aos Efésios 6,10-13, ele nos diz: “Finalmente, irmãos, fortalecei-vos no Senhor, pelo seu soberano poder. Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demônio. Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal espalhada pelos ares. Tomai, portanto, a armadura de Deus, para que possais resistir nos dias maus e manter-vos inabaláveis no cumprimento do vosso dever”.

Devemos contar com a graça de Deus, a armadura que nos reveste de força e coragem, porque sabemos que, por nossas forças, não somos capazes de dar um passo. Os santos da Igreja, da mesma forma, travaram duras batalhas contra as forças do mal. Alguns nos deixaram por escrito grandes heranças espirituais, narrando suas lutas, quedas, dificuldades e meios para vencer. Dentre eles São Padre Pio, Santa Faustina, São Francisco de Assis e muitos outros. Neste mês de julho, celebramos São Bento, e além da conhecida oração na medalha de São Bento, podemos colher de sua regra de vida algumas luzes que o próprio santo orientou seus monges na luta contra as investidas do mal.

A luta espiritual segundo São Bento

Todos os santos da nossa Igreja testemunham o confronto nas lutas espirituais, não com orgulho ou vanglória, mas tendo em vista a necessidade de encará-las como uma forma de crescimento e amadurecimento espiritual, sobretudo em assumir a própria parte nos sofrimentos de Jesus Crucificado. São Bento, por exemplo, não escreveu nada especificamente a respeito. Porém, na sua regra de vida, que inclusive foi o seu único escrito original, temos algumas orientações que ele dirige aos monges, e que ali podemos trazer para a reflexão acerca da batalha espiritual que travamos diariamente.

No prólogo da regra de vida, São Bento destaca a obediência como via de fidelidade e força na luta contra as investidas do mal. A obediência que se revela como remédio contra nossa tendência à rebeldia, o orgulho, a soberba e a autossuficiência, que foram justamente a causa da queda dos nossos primeiros pais. A obediência é o antídoto para que nos mantenhamos firmes frente às setas venenosas do demônio. A obediência que necessita particularmente de humildade, docilidade, escuta, renúncia, reconhecimento de pobreza e pequenez, que não somos capazes de vencer por nossas próprias forças. Obediência que necessita de um coração rendido à graça de Deus.

“A obediência é o antídoto para que nos mantenhamos firmes frente às setas venenosas do demônio.” | Foto ilustrativa: Reprodução

Tomemos as próprias palavras de São Bento: “Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência. A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei”. (Regra de São Bento, parágrafos 1-3)

Não há outro caminho. Um coração rendido à rebeldia e às obras da carne dificilmente conseguirá obedecer à voz do Senhor, e será levado ao vento das vozes maléficas que rondam sem cessar, porque, no combate espiritual, somos tentados a baixar as guardas, a cair na tibieza, na preguiça e no desânimo. Somos tentados a aceitar a mentira de que o combate é em vão. Continuemos a tomar as palavras de São Bento: “Levantemo-nos então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo: ‘Já é hora de nos levantarmos do sono’. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações’. […] Correi enquanto tiverdes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos envolvam”. (Regra de São Bento, parágrafos 8-13)

São Bento nos adverte: com o demônio não há diálogo. Não podemos manter conversa no momento da tentação, porque corremos o risco de nos perder. Não podemos dar ouvidos às sugestões do mal, mas abrir os ouvidos à verdadeira voz, à voz do Senhor. Correr enquanto tivermos tempo, ou seja, fugir de toda e qualquer ocasião de pecado. São Bento reforça com estas palavras referindo-se ao vencedor no momento da tentação: “É aquele que quando o maligno diabo tenta persuadi-lo de alguma coisa, repelindo-o das vistas do seu coração, a ele e suas sugestões, redu-lo a nada, agarra os seus pensamentos ainda ao nascer e quebra-os de encontro ao Cristo. São aqueles que, temendo o Senhor, não se tornam orgulhosos por causa de sua boa observância, mas, julgando que mesmo as coisas boas que têm em si não as puderam por si, mas foram feitas pelo Senhor, glorificam Aquele que neles opera, dizendo com o profeta: ‘Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai Glória’”. (Regra de São Bento, parágrafos 28-30).

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Como podemos ver, no combate contra o maligno, o que realmente conta, da nossa parte, é o reconhecimento humilde de que não podemos nada sem a graça de Deus. De fato, precisamos sim do nosso esforço, empenho, mas unido à graça, sobretudo apoiados na Misericórdia do Senhor no momento de nossas quedas. São Bento conclui assim: “Portanto, é preciso preparar nossos corações e nossos corpos para militar na santa obediência dos preceitos: e em tudo aquilo que nossa natureza tiver menores possibilidades, roguemos ao Senhor que ordene a sua graça que nos preste auxílio”. (Regra de São Bento, parágrafos 40-41)

Os efeitos na vida humana em meio à luta espiritual 

Somado às orientações de São Bento em sua regra de vida, não podemos nos esquecer da importância de uma vida sacramental, ou seja, a Confissão, a santa Comunhão e os próprios sacramentais, como o sinal da Cruz, a água benta, orações piedosas, e o auxílio da Virgem Maria e dos Santos. Por fim, alimentar em nossos corações um desprezo absoluto do demônio e um desejo de cada vez mais amar Nosso Senhor Jesus Cristo.

O sacerdote francês Adolphe Tanquerey (1854-1932) descreve os efeitos sobre a vida do homem em meio à luta espiritual, em sua obra Compêndio de Teologia ascética e mística: “[…] a vida cristã é uma luta. Uma luta penosa, com várias vicissitudes, que somete termina com a morte. Luta de extrema importância, pois o que está em jogo é a vida eterna. […]”. Importante ter em vista esta verdade. Não lutamos sem motivo, sem algo a conquistar. São Paulo, por diversos momentos, se utiliza da figura de um atleta que não mede esforços para ganhar a coroa da vitória. Da mesma forma, cada um de nós, contando com o auxílio da Graça de Deus, e não nos cansemos de lutar para ganhar a coroa imperecível que nos é reservada.

Tanquerey continua: “Essa luta é ininterrupta porque, por mais que nos esforcemos, jamais poderemos nos libertar inteiramente do homem velho. Podemos sim enfraquecê-lo, acorrentá-lo, e ao mesmo tempo fortalecer o homem novo contra os seus ataques. No início a luta é mais aguda, mais intensa, […] mas, à medida que, com esforços enérgicos e constantes, vamos triunfando, o inimigo vai enfraquecendo, as paixões se acalmam e, salvo em certos momentos de provações enviadas por Deus para alçar-nos a um grau mais elevado de perfeição, desfrutamos de relativo sossego, pressagio de vitória final. Devemos a vitória à graça de Deus”.

Roguemos a graça de Deus para que sejamos firmes, perseverantes e fiéis no combate contra o inimigo. Peçamos a graça de um coração humilde, obediente e sensível à voz do Senhor que nos reveste de coragem e fé, a fim de que possamos, enfim, gozar das alegrias eternas. Contemos com a intercessão de São Bento, rezando com fé:

“A Cruz Sagrada seja a minha luz, não seja o dragão o meu guia. Retira-te, satanás! Nunca me aconselhes coisas vãs. É mau o que tu me ofereces. Bebe tu mesmo os teus venenos! Amém.”

Deus abençoe você.

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