“Deus vai além com cada um de nós…”
Conheço bastante gente, atendi muitas, conversei com outras tantas, mas confesso que, nesses 36 anos de vida, nunca conheci pessoalmente algum herdeiro, desses que costumamos ver em filmes ou em noticiários. Talvez você que lê este artigo possa conhecer ou até mesmo ser um. Com todo respeito a quem é, fiquei me questionando ao escrever o que qualifica alguém como herdeiro de algo, qual mérito está presente em receber uma herança.
A princípio, a resposta que me veio à mente foi uma só: não há mérito! Um filho herda uma quantia de um pai ou de mãe, recebe-a pelo fato de ser filho, talvez o único possível de receber aquele valor. Ainda assim, é possível que aquele que morre deixe restrito em testamento a porção da herança aos beneficiados, ou até mesmo deserde aqueles que considerar indigno através de um processo civil, por alguma causa plausível.
Deus vai além com cada um de nós… Como nosso Pai poderia nos avaliar em nossos deméritos e nos deserdar por nossas constantes ofensas e desagravos ao seu infinito amor? Sim, somos filhos, porque, uma vez batizados, somos incorporados a Cristo e nos tornamos filhos no Filho. Porém, nosso mal agir poderia nos desqualificar ao acesso da herança do Reino dos Céus.
Porém, Deus mesmo se faz herança para nós, depositando a Si mesmo em nossas vidas, naquilo que é em essência, como nos ensinou o discípulo amado em uma das epístolas: “Deus é amor!”. Em outras palavras, Deus nos concede por herança a sua misericórdia. É uma antecipação dos bens que só teremos acesso na eternidade, mas que Deus antecipa no tempo para que n’Ele permaneçamos.
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O Direito define herança como patrimônio deixado por alguém após sua morte. Ou seja, a herança requer a morte de alguém. Ora, na Cruz, vemos o Testamento definitivo de Cristo, que, mesmo esmagado pelos pecados e ultrajes daqueles a quem veio salvar, pede perdão ao Pai para seus algozes. Do seu lado ferido jorram sangue e água do Coração de Jesus, associado no tempo à fonte inesgotável da Misericórdia Divina (cf. Diário de Santa Faustina).
Por herança, recebemos com a morte de Cristo, o acesso ao Pai, a comunhão rompida pelo pecado em nossas vidas: as portas fechadas do paraíso do Éden pela desobediência dos primeiros pais se abrem de forma ainda mais plena à beatitude que nos aguarda pelos méritos da obediência do sacrifício do Redentor. E onde poderia estar o mérito de tamanha graça senão na misericórdia?
Nesse sentido, podemos afirmar sem medo: somos herdeiros da misericórdia divina, algo tão profundo que nos excede o entendimento. Um perdão sem medidas e comparação que alcança todo aquele que assume para si o direito a esse bem. Aquele que não se apropria do que é seu, por direito concedido por Deus, não apenas deixa de experimentar seus benefícios, mas renega o próprio bem oferecido: são como porcos a quem são oferecidas pérolas de inestimável valor.
Porém, quem assume e recebe a herança da misericórdia a nós concedida pelos méritos da Paixão de Cristo, possui uma missão a cumprir. A misericórdia é dom e tarefa, e como tal, precisa ser oferecida a todos. O herdeiro se torna doador do bem que recebe. Em primeiro lugar, pela própria extensão do que ganha: como reter em si algo que é incalculável? Em segundo lugar, porque não se baseia nos méritos pessoais: como não oferecer misericórdia aos outros, ainda que, assim como eu, não sejam achados dignos de possuí-la?
Ressoam as palavras de Jesus descritas pelo Evangelista Lucas: “amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca. Então, a vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até com os ingratos e os maus. Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,35-36). É próprio de quem é herdeiro do Pai das misericórdias distribuir na vida de outros tão grande bem que recebeu.
É dar de graça aquilo que por graça foi doado. Isso se dá de forma muito clara e objetiva nas realidades da vida. Quando alguém nos ofender, em troca de vingança e ressentimento, oferecer perdão e oração; quando alguém nos faltar com algo, atenção, respeito, amor, oferecer o que não foi dado; quando alguém cometer um pecado ou fazer padecer com escândalo, omitir-se da equivocada função de juiz – ou advogado de acusação – e ser, no mínimo, aquele que abandona as pedras (cf. Jo 8), reza pela conversão e, na medida do possível, ser quem acolhe, cuida das feridas e se compromete a dar algo a mais em favor da salvação de quem parece estar perdido. Fácil de listar, mas um verdadeiro trabalho de conversão interior de quem sabe que é amado e não pode reter em si o imerecido amor.
Agir de forma contrária, seria repetir o erro do servo perdoado da quantia enorme, a qual não tinha meios para sanar senão pela piedade do seu senhor, mas que não aplicou o mesmo peso e a mesma medida com aquele que lhe devia um valor ínfimo se comparado à dívida perdoada (cf. Mt 18,23-35).
Não há outra via ao herdeiro da misericórdia senão se tornar doador. Ainda que prove em vida da misericórdia, corre risco de não provar daquilo que lhe é reservado na eternidade ao lado do verdadeiro doador de toda graça e misericórdia.
George Lima
Membro definitivo da Comunidade Canção Nova. É natural de Maranguape – CE, tem 35 anos, ingressou na Comunidade em 2014 e no seminário Canção Nova em 2016. Bacharel em Comunicação Social, Jornalismo, pela UFC, licenciado em Filosofia pela Faculdade Canção Nova, atualmente, cursa o 2º ano de Teologia.