ATITUDE

A misericórdia em atos

A misericórdia (“encarnada”) em atos

A misericórdia é um atributo especial de Deus. Por isso, a Sagrada Escritura nos lembra que “a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a Sua compaixão. Cada manhã ela se renova; é grande a Sua fidelidade” (Lm 3, 22-23). O Papa Francisco, na bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia que se deu a partir de 08 de dezembro de 2015, também enfatizou a grandeza do mistério da misericórdia Divina com densas palavras que merecem nossa atenção: 

”Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. (Ela) é fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado” (Misericordiae Vultus).

“Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36) . | Foto ilustrativa: banprik by Getty Images

Ora, uma vez alcançados por essa experiência da misericórdia, descobrimos que Deus é o Pai das Misericórdias! Mas conforme diz a máxima de que todo dom porta uma tarefa, é preciso considerar que a experiência da misericórdia tem sérias implicações para a vida cristã. Em outras palavras, há uma intrínseca e necessária relação entre a experiência de misericórdia que recebo de Deus e a experiência de misericórdia que dou ao próximo. 

Essa dupla dimensão, que relaciona o dom e a responsabilidade, que provém da misericórdia é bem retratada em diversas parábolas e ensinamentos de Jesus. Basta lembrar a parábola do servo incompassivo que foi duramente repreendido depois de ser perdoado pela sua grande dívida e, ingratamente, mostrar-se incapaz de reproduzir a misericórdia recebida para perdoar alguém que lhe devia uma quantia inferior (Cf. MT 18, 21-35).  No fundo, essa e outras parábolas expressam o surpreendente mandamento de Jesus: Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36) . 

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Se tal mandamento, por vezes, nos parece demasiadamente exigente, é preciso olhar para Jesus e descobrir com maravilhamento que Ele foi o primeiro a encarnar e personificar essa misericórdia, que é o jeito persistente de Deus nos amar.  Tal realidade é aprofundada por São João Paulo II, em sua encíclica Dives in Misericordia (nº 2), quando ele lembra que Jesus “não somente fala dela e a explica com o uso de comparações e parábolas, mas sobretudo Ele próprio encarna-a e personifica-a. Ele próprio é, em certo sentido, a misericórdia. Para quem a vê n’Ele — e n’Ele a encontra — Deus torna-se particularmente ‘visível’ como Pai ‘rico em misericórdia’”.

Se Jesus encarnou a misericórdia, a Igreja encara-a como missão e, por isso, procura colocá-la em prática. A perspectiva dessa misericórdia que se traduz (e transborda) em atos, ou em outras palavras, da misericórdia como missão ou responsabilidade vem, portanto, do próprio ensinamento de Jesus que, segundo São João Paulo II, no texto supracitado, “ensinou que o homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também chamado a ‘ter misericórdia’ para com os demais. ‘Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia’ (MT 5,7). A Igreja vê nestas palavras um apelo à ação e esforça-se por praticar a misericórdia. Se todas as bem-aventuranças do Sermão da Montanha indicam o caminho da conversão e da mudança de vida, a que se refere aos misericordiosos é particularmente eloquente a tal respeito. O homem alcança o amor misericordioso de Deus e a sua misericórdia, na medida em que ele próprio se transforma interiormente, segundo o espírito de amor para com o próximo” (nº14).

Por fim, para que finalmente possamos “encarnar” e “encarar” a misericórdia nos atos e relações que permeiam nossa vida, é preciso destacar o que eu chamaria de beleza vertical da atitude cristã da caridade, que, por ser transbordamento ou imitação da experiência de Deus, tem um caráter teologal. Isso porque a caridade cristã vai além de uma filantropia ou de um ativismo estritamente social. Dessa forma, verifica-se que “a ação do homem e da sociedade, e suas relações mútuas têm uma dimensão transcendente que Deus conhece e sanciona” (Comentário da Bíblia do Peregrino, p. 2379). Concluindo, vale evocar o pensamento de Bento XVI quando disse que “a caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo” (Caritas in veritate, nº 6).

Referências:

BENTO XVI. Carta Encíclica Caritas in Veritate. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html>. 

BÍBLIA DO PEREGRINO. São Paulo: Paulus, 2002.

FRANCISCO. Bula Misericordiae Vultus.  Disponível em: <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html>. 

JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Dives in misericordia. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30111980_dives-in-misericordia.html>. 

 

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