O prólogo do Evangelho de São João inicia-se da seguinte forma:
“No Princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele havia vida, e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam” (Jo 1,1-5).
É belo o modo como São João nos fala a respeito do Verbo, ou seja, da Palavra. A Palavra que estava presente desde todo o sempre. Por ela deu-se o Fiat, ou seja, Faça-se. Pela Palavra, todas as coisas foram criadas, vieram à existência. Pela Palavra, a luz resplandeceu. E continua o evangelista:
“O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. Mas todos aqueles que o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus.” (Jo 1,9-13)
Nesta palavra de São João, podemos compreender o poder que a Palavra de Deus exerce na vida daqueles que creem. A Palavra criou tudo, é a própria luz que brilha nas trevas do coração humano marcado pelo pecado. Portanto, podemos assumir aquilo que somos de fato: filhos de Deus, filhos da Luz.
Mas existe a condição apresentada pelo próprio evangelista: acreditar. Crer é o princípio para que sejamos verdadeiramente homens e mulheres novos, pelo poder da Palavra.
Deus se comunica com o homem
O Papa Bento XVI nos apresenta, em sua Exortação Apostólica Verbum Domini, as seguintes palavras:
“A novidade da revelação bíblica consiste no fato de Deus se dar a conhecer no diálogo, que deseja ter conosco. A Constituição dogmática Dei Verbum tinha exposto esta realidade, reconhecendo que ‘Deus invisível na riqueza do seu amor fala aos homens como a amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele’.” (VD 6)
No relato do Livro do Gênesis, sabemos bem que era assim o relacionamento de Deus com o primeiro homem, Adão. Não havia distância, barreiras, impedimentos. Era uma relação livre. Infelizmente, por conta da queda do pecado, o homem rompeu esta forma de relação tão próxima com Deus, ao ponto de Adão e Eva se esconderem por medo d’Ele. A dureza do coração, a falta de escuta e não acolhida da Palavra geraram esse rompimento.
O desejo do Coração de Deus não esfriou com a queda do homem. Em toda a história de salvação do povo de Israel, Deus não se cansou em manter os laços de unidade, de amor e comunhão com o homem. Foi assim com Abraão, com Jacó, com Moisés e tantos outros. Com Moisés, Deus falava como quem se relaciona com um amigo.
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Por esse motivo, em toda a história de Salvação, Deus não mediu esforços e meios para falar ao seu povo. Não desistiu de sua Aliança, porque é fiel e porque ama seu povo. Mas, infelizmente, seu povo não o escutou. Por diversas vezes, vemos no Antigo Testamento, a referência ao “povo de cabeça dura”. Um povo fechado, levado pela fragilidade do próprio coração, mesmo tendo à sua frente tantas provas de amor e fidelidade que Deus incansavelmente demonstrava. Bento XVI continua:
“Muitas vezes, encontramos, tanto no Antigo como no Novo Testamento, a descrição do pecado como não escuta da Palavra, como ruptura da Aliança e, consequentemente, como fechar-se a Deus que chama à comunhão com Ele. Com efeito, a Sagrada Escritura mostra-nos como o pecado do homem é essencialmente desobediência e ‘não escuta’.” (VD 26)
No percurso do Antigo Testamento, Deus usou de diversas formas e pessoas para falar ao coração endurecido do homem. Utilizou-se de profetas, sinais, palavras, fenômenos da natureza. Até mesmo por meio dos “castigos”, das privações. E, por fim, através de Seu Filho, o Verbo que se fez carne e habitou entre nós, Jesus Cristo. E sabemos que nem mesmo Jesus foi aceito e compreendido. Aqui, podemos entender o que São João apresenta no seu prólogo:
“Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” (Jo 1,10-11).
Quando Jesus inicia sua missão, Ele próprio toma a Palavra do profeta Isaías, proclama e assume para si o cumprimento da profecia: era o tempo da graça para o homem, o kairos, o tempo da libertação do homem das trevas do pecado e da morte. Era o tempo da alegria, porque ali estava, em pessoa, o cumprimento da promessa de Deus. E, mais uma vez, por conta da dureza dos corações, o Verbo não foi acolhido.
Portanto, desde sempre, por meio de sua própria vontade, Deus quer falar ao coração do homem. Na sua liberdade de Pai, Ele se permite conhecer ao homem, e quer se relacionar como um Pai ao filho. Seu desejo nada mais é do que resgatar a cada um de nós dos caminhos errados que o pecado gerou em nós:
“Meu filho, não desprezes a correção do Senhor, nem te espantes de que ele te repreenda, porque o Senhor castiga aquele a quem ama, e pune o filho a quem muito estima.” (Pr 3,11-12)
Acolher a Palavra no coração e traduzi-la em vida
Bento XVI continua a nos instruir em sua exortação Verbum Domini:
“A Palavra divina introduz cada um de nós no diálogo com o Senhor: o Deus que fala, ensina-nos como podemos falar com Ele. Espontaneamente o pensamento detém-se no Livro dos Salmos, onde Ele nos fornece as palavras com que podemos dirigir-nos a Ele, levar a nossa vida para o colóquio com Ele, transformando assim a própria vida num movimento para Deus. De fato, nos Salmos, encontramos articulada toda a gama de sentimentos que o homem pode ter na sua própria existência e que são sapientemente colocados diante de Deus; alegria e sofrimento, angústia e esperança, medo e perplexidade encontram lá a sua expressão. […] Deste modo, a palavra que o homem dirige a Deus torna-se também Palavra de Deus.” (VD 24)
Como anteriormente já destacado, o erro do homem, desde o início, foi não acolher a Palavra do Senhor no coração. A rebeldia do coração humano, o impulso e anseio de autossuficiência acaba, por assim dizer, fechando os ouvidos e o coração à voz de Deus que, a todo momento, nos quer falar. Um dos meios é a Sagrada Escritura. Como anteriormente destacado por Bento XVI, a palavra exprime uma relação de intimidade. Deus quem fala, o homem que escuta, acolhe e dirige novamente a Deus os sentimentos, as angústias, as alegrias. A Palavra é uma relação que ganha corpo e se manifesta em oração, seja ela de súplica, de louvor, de entrega. É a Palavra de Deus que nos garante a vida. O profeta Jeremias expressa de maneira profunda:
“Quando as tuas palavras foram encontradas, eu as comi; elas são a minha alegria e o meu júbilo, pois pertenço a ti, Senhor Deus dos Exércitos.” (Jr 15,16)
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Muito além das palavras, Cristo traduziu em atos concretos o plano de salvação de Deus acerca dos homens. Curou doentes, libertou cativos, adentrou nos corações. Tudo por meio das palavras que se concretizavam em ações. E muitos corações se abriram. É belo quando paramos para refletir o momento do encontro de Cristo com o centurião:
“Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha casa. Dizei uma só palavra e meu servo será curado” (Mt 8,8).
Aqui, chegamos no ponto fundamental, o passo para tomarmos posse das promessas de Deus: o dom da fé. Acreditar que, mesmo quando não conseguimos enxergar, Deus é fiel.
Os efeitos da força da Palavra
“O evangelho é a força salvadora de Deus para todo aquele que crê. Nele, com efeito, a justiça de Deus se revela da fé para a fé, como está escrito: O justo viverá pela fé.” (Rm 1,16b-17)
A Palavra que se revela ao homem, principalmente por meio da Sagrada Escritura, apresenta-se como um diálogo profundo de um Deus que, por Sua vontade, quer se revelar ao homem. Deseja revelar ao homem a Sua vontade, os caminhos que devemos seguir. Acima de tudo, por meio de Sua Palavra, quer nos resgatar do poder da palavra nociva e mentirosa que o demônio insiste em investir.
Mas é preciso, como antes já acenamos, um ato de fé. Deixar cair por terra as nossas concepções e razões humanas, e ir além. Assim como o testemunho do centurião – crer, mesmo sem ver; acreditar, sem constatar –, Deus pode realizar muito além das nossas pobres concepções. Nesse sentido, Bento XVI continua a nos dizer na Verbum Domini:
“A resposta própria do homem a Deus, que fala, é a fé. Isto coloca em evidência que, para acolher a Revelação, o homem deve abrir a mente e o coração à ação do Espírito Santo que lhe faz compreender a Palavra de Deus presente nas Sagradas Escrituras. De fato, é precisamente a pregação da Palavra divina que faz surgir a fé, pela qual aderimos de coração à verdade que nos foi revelada e entregamos todo o nosso ser a Cristo: ‘A fé vem da pregação, e a pregação pela palavra de Cristo.’ (Rm 10, 17).” (VD 25)
Este verdadeiramente é o grande efeito na vida do homem: experimentar a ação de Deus contida na Palavra pela força da fé. Não podemos tomar a Sagrada Escritura como um jogo de sorte. Ou seja, abrir e ver aquilo que vai dizer da minha sorte para aquele dia. Não devemos tratar assim a Palavra. Sim, devemos tomá-la, abri-la, mas com o desejo de ouvir, acolher aquilo que Deus quer revelar ao meu coração para aquele dia ou situação. E mais ainda acolher, principalmente quando se trata de uma exortação, porque Deus quer, em primeiro lugar, nos corrigir por meio de sua Palavra. Quer gerar em nós efeitos de conversão, de mudança de vida.
Enquanto Comunidade Canção Nova, temos o exemplo de nosso Pai Fundador Monsenhor Jonas Abib. Sem dúvida, um dos maiores modelos de Profeta, de homem da Palavra. Muito mais do que um homem visionário, sonhador, que de fato ele era, Monsenhor Jonas era um homem plenamente tomado pela Palavra de Deus. Um homem que, em tudo, tomou com fervor e fé aquilo que Deus o revelava por meio da Palavra. Não era à toa que, nos inícios do seu apostolado com os jovens e nos inícios da Comunidade Canção Nova, era conhecido como o “Padre Jonas da Bíblia”.
Tantas pessoas foram alcançadas e até mesmo motivadas a cultivar este relacionamento profundo com a Palavra, através do testemunho de Monsenhor Jonas Abib. Ainda hoje, o seu legado permanece. O legado de, em tudo, em qualquer situação, recorrermos à Palavra de Deus. Porque a “Palavra é lâmpada que ilumina os meus passos e luz que clareia o meu caminho” (Sl 119,105).
Portanto, deixemo-nos iluminar por essa luz que ilumina nossos passos, nossa mente, nosso coração e todo o nosso ser. Que seja a Palavra do Senhor a curar nossos corações, nossa história ferida por tantas realidades. Que seja a voz do Senhor a nos conduzir ao caminho de conversão, de santidade. Que seja a Palavra a renovar em nós o dom da fé, transformando-nos em homens e mulheres novos, na feliz expectativa do Senhor que vem. Amém.
Deus abençoe você!
Fontes:
BÍBLIA Sagrada CNBB. 10ª ed. São Paulo: Edições CNBB/ Editora Canção Nova, 2010.
BENTO XVI. Exortação apostólica pôs-sinodal Verbum Domini – sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_exhortations/documents/hf_ben-xvi_exh_20100930_verbum-domini.html>.