Obra de Misericórdia

Dar de beber a quem tem sede

As obras de misericórdia corporais

Esta segunda obra de misericórdia “Dar de beber a quem tem sede” complementa a primeira das sete obras de misericórdia corporais “Dar de comer a quem tem fome”, abordada no artigo anterior. Ambas se referem à ajuda que devemos prestar aos irmãos mais carentes, mediante das necessidades primordiais que mantêm vivo o corpo humano: comida e água. Essas duas obras de misericórdia possuem um sentido mais profundo, dado que simbolizam a necessidade da verdadeira comida e da água verdadeira que só Jesus pode nos oferecer: “Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crer em mim jamais terá sede” (Jo 6,35). Pode-se observar que o apóstolo São João retoma esta simbologia no livro do Apocalipse com uma promessa de salvação, com os seguintes dizeres: “Já não terão fome, nem sede, […] porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os levará às fontes das águas vivas” (Ap 7,15-16). 

A-minha-alma-tem-sede-de-Deus

“O seu pastor e os levará às fontes das águas vivas” | Foto: Wesley Almeida / cancaonova.com

No que concerne à ênfase que a Sagrada Escritura exprime acerca da água, atribuindo-lhe um sentido espiritual, dado que esta passa a ser o símbolo do próprio Deus, destaca-se a oração do salmo 42,2s: “Como a corça anseia pelas águas vivas, assim minha alma suspira por vós, ó meu Deus.” O texto profético de Jeremias (2,13) exprime de maneira peculiar esta simbologia: “Abandonaram a mim fonte de água viva, e cavaram cisternas furadas, que não retêm água”. O profeta Isaías (12,3) de igual modo a menciona: “Tirarás água com alegria da fonte da salvação”. Neste horizonte, são sumamente relevantes as palavras do próprio Jesus dirigidas à samaritana

Se conhecesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber, certamente lhe pedirias tu mesma e ele te daria uma água viva. […] ‘Todo aquele que beber desta água tornará a ter sede, mas o que beber da água que eu lhe der jamais terá sede. Mas a água que eu lhe der virá a ser nele fonte de água, que jorrará até a vida eterna’. (Jo 4,10. 13-14). 

O contexto Joanino convida a ver na água viva prometida por Jesus o Espírito Santo, profetizado na tradição bíblica (Ez 37,1-14; Jl 3,1-2; Is 11,1-5), mostrando que esta água é a causa da renovação interior do gênero humano, graças à missão primordial de Jesus, levada a termo com sua morte ignominiosa na cruz. Com efeito, ao considerar que “Jesus Cristo […] continua a estar presente e a operar a salvação na Igreja e através da Igreja” (DOMINUS IESUS N.16), o Magistério eclesial assegura que “por outro lado, é importante o simbolismo da água, que encontra o seu pleno significado no batismo cristão. […] Assim como a água purifica, o mesmo acontece com o batismo. […] Por isso, o batismo é concebido como um banho de novo nascimento e da renovação do Espírito Santo.” (CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO, 2015, p. 55).

Isto posto, convém colocar em relevo o valor da água no plano natural, isto é, como criatura de Deus dada aos homens para as mais diversas finalidades, sendo a mais importante de todas a saciedade de sua sede. Neste sentido, assim se expressou o Papa Francisco já em sua primeira Carta Encíclica Laudato Sì’: 

O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável. (N. 30).

As palavras do Santo Padre fazem alusão à caridade radicada no amor de Deus, que instrui através da Sagrada Escritura, da Tradição e do Magistério eclesial, aos homens de boa vontade, quer atuem no Estado, na religião, ou em quaisquer departamentos da sociedade, para que pratiquem os princípios éticos da solidariedade e da subsidiariedade em prol do bem comum. O princípio da solidariedade responsabiliza cada pessoa a colocar-se a serviço dos próprios semelhantes. E o da subsidiariedade ensina a ter mais cuidados com quem mais necessita de cuidado (fome, sede, casa, trabalho…), exigindo, ao mesmo tempo, que o poder público não suplante iniciativas livres de cada um e dos grupos, mas garanta seu funcionamento.

Neste contexto, destaca-se o relevante empenho da doutrina social da Igreja que, ao considerar o alto valor da dignidade humana, promove a prática do amor caritativo, principalmente para com os pobres, nos setores da família, do trabalho e da política. Trata-se, especificamente para os cristãos, de manifestar autenticamente a própria fé, conforme o ensinamento destas palavras de Jesus: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). 

A água e a alimentação são dádivas concedidas por Deus a toda a humanidade e devem estar disponíveis aos homens de quaisquer classes sociais. Nesse sentido, o Papa Bento XVI afirma:

Os direitos à alimentação e à água revestem um papel importante para a consecução de outros direitos, a começar pelo direito primário à vida. Por isso, é necessária a maturação duma consciência solidária que considere a alimentação e o acesso à água como direitos universais de todos os seres humanos, sem distinções nem discriminações. (CARITAS IN VERITATE, n. 27).

        Com efeito, Cristo continua presente na vida daqueles que se abrem ao seu amor misericordioso e ilumina as consciências acerca da promoção e da vivência do bem comum. Ele enaltece e santifica o homem pela força do Espírito Santo e impele-o à prática do amor-ágape traduzido também na prática das boas obras. “Dar de beber a quem tem sede” é um imperativo atual e veemente do próprio Jesus que, mostrando a importância desta obra de misericórdia, afirmou: “Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque […] tive sede e me destes de beber…” (Mt 25, 34-35).  O seu significado pode ser compreendido em sua dimensão natural, dado que a água é necessária para manter vivo o corpo humano e também em sua dimensão sobrenatural já que somos convidados a buscarmos a Deus – fonte de água viva – para que assim sejamos salvos. A esse respeito, eis o que escreveu o Catecismo da Igreja Católica: “Deus tem sede de que nós tenhamos sede Dele.” (CIC, 2560). 

O próximo artigo desta sessão temática colocará em relevo a terceira obra de misericórdia corporal que consiste em “vestir os nus”. Peçamos ao Espírito Santo que nos revista dos sentimentos de Cristo (Fl 2,5) para que sejamos capazes de vê-Lo principalmente nos mais necessitados.


Áurea Maria,
Comunidade Canção Nova

Referências 

BENTO XVI. Carta Encíclica Caritas in veritate. 29 jun 2009. Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html. Acesso em: 08 de maio de 2020.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Tradução da Conferência nacional dos Bispos do Brasil. 10. ed. São Paulo: Loyola, 2000.

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. 06 ago 2000. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000806_dominus-iesus_po.htm.l  Acesso em: 15 de maio de 2020.

CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. As obras de Misericórdia Corporais e Espirituais. Tradução de Mário José dos Santos. São Paulo: Paulinas, 2016.

PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’. 24 maio 2015. Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html. Acesso em: 15 de maio 2020.

PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ.  Compêndio 
da Doutrina Social  da Igreja.  Vaticano, 29 jun. 2004. Disponível em:  http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html. Acesso em: 15 de maio de 2020.

SCHOKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. Tradução de Ivo Storniolo, José Bortolini e José

Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2002.

Deixe seu comentários

Comentário