A penitência interior ou conversão do coração é expressa por diversas formas como o jejum, a oração e a esmola
Jesus deu uma ordem às pessoas que questionavam o fato Dele estar sentado à mesa com os publicanos e pecadores: “Ide, pois, e aprendei o que significa misericórdia quero e não o sacrifício” (cf. Mt 9,13). O Catecismo da Igreja Católica comenta esse versículo bíblico dizendo que “Jesus escandalizou sobretudo porque identificou sua conduta misericordiosa para com os pecadores com a atitude do próprio Deus para com eles”. Deus é amor! Deus é misericórdia! No Antigo Testamento, Deus já chamava a atenção para sua misericórdia, como em Oz 6,6: “Porque é o amor que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus, mais do que holocaustos”.
Lembro aqui as palavras de Santa Faustina de que: “Embora o pecado seja um abismo de maldade e ingratidão, o preço ofertado por nós é sempre incomparável – por isso, que toda alma confie na Paixão do Senhor e tenha esperança na Misericórdia. Deus a ninguém nega a Sua misericórdia. Céu e terra poderão mudar, mas não se esgotará a misericórdia de Deus” (DIÁRIO DE SANTA FAUSTINA, 2014, n. 72).
Santa Faustina alerta para o fato de que a oferta dada por Jesus Cristo na Cruz, pelos nossos pecados, não se pode comparar ou ser superada por nenhum sacrifício feito pelo homem e por isso devemos confiar na Misericórdia de Deus.
Essas reflexões são importantes para a compreensão do tema, tendo em vista que por mais que queiramos ofertar sacrifícios a Deus, estes nunca poderão chegar ao patamar da entrega de Cristo na cruz.
Deus não proíbe os sacrifícios feitos pelos homens mesmo já tendo pago nossos pecados na Cruz e mesmo diante da sua Misericórdia! O Catecismo da Igreja Católica, no nº 2099, afirma que é “justo oferecer a Deus sacrifícios em sinal de adoração e de reconhecimento, de súplica e de comunhão…”, mas afirma, citando Santo Agostinho, que o sacrifício verdadeiro é aquele que é feito para “se unir a Deus em santa comunhão e poder ser feliz”.
Quando pensamos em sacrifício lembramos logo da penitência. Será que ela é importante? Sim, mas não deve ser apenas uma prática exterior e muito menos, uma ação que leve à destruição do corpo ou lhe traga danos, nem afete negativamente a alma, e abale o amor a Deus e ao próximo! E por isso, deve se ter cuidado e evitar exageros nas escolhas das penitências, para que não provoquem as situações descritas acima. Isto porque nenhuma penitência poderá se igualar ou superar a oferta de Jesus na Cruz!
Nossa Senhora, na aparição em Fátima, fala da importância da penitência, mas sempre atrelada à conversão e em reparação pelos nossos pecados e os do mundo inteiro (Áurea Maria)
A palavra penitência tem diversos significados! Segundo Born (1987, p. 1176-1177), no Antigo Testamento, a penitência tinha como elementos essenciais a confissão dos pecados (Lv 5,5; Lv 16,21; 2Sm 12,13; 1Sm 7,6; Esd 9, 6-15; Ne 1,6s; Ne 9,2s) e as orações penitenciais (Is 63,7 – 64,11; Dn 9, 4-19; Tb 3, 1-6. 11-15; Jt 9, 1-14). Havia também a prática de gestos como: chorar, jejuar, rasgar as vestes, usar um cilício de crina, dormir no chão, cobrir a cabeça com cinza ou assentar-se na cinza, arrancar os cabelos da cabeça e da barba (2Sm 12, 16; 1Rs 20,27, Jl1. 13s; 2,15-17; Jon3,6-8; Esd 9,3; Ne 9,1: Dan 9,3; Jdt9,1; Eclo 34,26 etc.). E ainda derramar água (1Sm 7,6), fazer incisões no corpo (Os 7,14), e dar esmolas para perdão dos pecados (Tb 4,11; Tb 12,9; Eclo 3,30; Eclo 7,10; Dn 4,24). Born afirma ainda que as boas obras e a oração, aos poucos, vão substituindo o sacrifício (Eclo 17,25; Eclo 21,1; Eclo 28,4; Eclo 39,5). Aponta ainda para o dia de penitência também chamado de jejum (Jr 36,6.9; Jl 2,15). Tal dia podia cair também no dia do aniversário de calamidades do passado (Zc 7,3.5). Para essas práticas penitenciais do Antigo Testamento Born faz uma observação:
“A prática de penitência corria de duas maneiras o perigo de ficar sem a base de sentimentos internos de arrependimento e consciência de culpa: as manifestações comunitárias de penitência nem sempre eram acompanhadas de arrependimento pessoal, e os atos externos de penitência praticados pelo indivíduo podiam tornar-se um formalismo vazio. Por isso os profetas tiveram de lembrar repetidas vezes ao povo a essência da atitude penitente e da religiosidade em geral (1Sm 15, 22s; Is 1, 10-17; Is 29,13; 1s 58; Jr 7; Jr 14,12; Os 6,6; Os 7,14; Jl 2,13; Zc 7,5s; cf. Mt 9,13; Mt 12,7; Mc 12,33),(BORN, 1977, p. 1177).
Dessa forma, no Antigo Testamento a vida penitencial podia estar desatrelada do arrependimento e da consciência de culpa e por isso mesmo não agradar a Deus.
No Novo Testamento a noção de conversão estava ligada a uma mudança de comportamento junto com a vivência de uma nova realidade escatológica, podendo os cristãos apresentarem tristeza por pecar e recorrerem à confissão dos pecados (Mt 26,75; Lc7,38; Mt 3,6; Lc 15,21; Lc 18,13; Tg 5,16; 1Jo 1,9; Mt 11,21). Born (1977, 1177-1178) comenta ainda que “os ‘dignos frutos de penitência’ (Mt 3,8 par.; At 26,20) não são obras de penitência, mas uma conduta de acordo com a conversão interna”. Veja que assim como já apontava o Antigo, no Novo Testamento, a conversão interior é muito importante!
Mesmo diante dessa abrangência de abordagem em relação à penitência, aqui usaremos o sentido de “penitência interior” trazido pelo Catecismo da Igreja Católica, no nº 1430, como aquela que visa à conversão do coração expressa por sinais visíveis, gestos e obras, pois:
“A penitência interior é uma reorientação radical de toda a vida, um regresso, uma conversão a Deus de todo o nosso coração, uma rotura com o pecado, uma aversão ao mal, com repugnância pelas más ações que cometemos. Ao mesmo tempo, implica o desejo e o propósito de mudar de vida, com a esperança da misericórdia divina e a confiança na ajuda da sua graça. Esta conversão do coração é acompanhada por uma dor e uma tristeza salutares, a que os Santos Padres chamaram animi cruciatus (aflição do espírito), compunctio cordis (compunção do coração)” (CATECISMO, n. 1431).
Mas não se pode esquecer que a conversão do coração é obra da graça de Deus e acontece também quando contemplamos a grandeza do amor Dele no Cristo crucificado, que morreu pelos nossos pecados (CATECISMO, n. 1432).
Destacamos o pensamento de São Clemente de Roma que diz: “Tenhamos os olhos fixos no sangue de Cristo e compreendamos quanto Ele é precioso para o seu Pai, pois que, derramado para nossa salvação, proporcionou ao mundo inteiro a graça do arrependimento”. E é o Espírito Santo que desmascara o pecado e ao mesmo tempo consola ao homem concedendo-lhe a graça do arrependimento e da conversão (CATECISMO, 1432-1433).
E a ainda temos o antídoto para nos livrar dos pecados que é a Eucaristia pela qual somos nutridos e fortificados nessa luta. Na leitura da Palavra, na Liturgia das Horas, na oração do Pai Nosso, no culto ou ato de piedade também são renovados em nós “o espírito de conversão e de penitência e contribuem para o perdão dos nossos pecados” (CATECISMO, n. 1437).
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O Catecismo ainda menciona, no nº 1438, que “os tempos e os dias de penitência no decorrer do Ano Litúrgico (tempo da Quaresma, cada sexta-feira em memória da morte do Senhor) são momentos fortes da prática penitencial da Igreja. Estes tempos são particularmente apropriados para os exercícios espirituais, as liturgias penitenciais, as peregrinações em sinal de penitência, as privações voluntárias como o jejum e a esmola, a partilha fraterna (obras caritativas e missionárias)”. Tudo deve decorrer da conversão do coração a Deus!
A penitência interior ou conversão do coração é expressa por diversas formas como o jejum (abstinência total ou parcial de comida e bebida), a oração e a esmola (compaixão, beneficência), mencionadas pela Sagrada Escritura e pelos Santos Padres, conforme o Catecismo da Igreja Católica, no nº 1434. Tais formas de penitência devem brotar do coração convertido, cheio de amor e conhecimento de Deus, ansioso por jejuar, orar e partilhar o que tem, por ter o coração invadido pela misericórdia do Pai, vivida no Filho. Um coração misericordioso e desejoso também de amar. E sendo assim, não são meros sacrifícios oferecidos a Deus, mas devem decorrer do movimento de conversão provado pela graça de Deus nos corações abertos dos homens.
Veja que não são simplesmente práticas exteriores, e não precisam ser exageradas, carregadas de sofrimento e dores excessivos, e nem devem provocar destruição ou prejuízo ao corpo e à alma e muito menos ao próximo. A misericórdia divina, que também deve brotar do coração do homem, não permite que tenhamos atitudes de mutilação ou destruição contra nós mesmos e contra os outros por conta dos nossos pecados. Jesus já pagou na Cruz pelos nossos pecados. A importância da penitência está em refletir a conversão de um coração a Deus, que se coloca em jejum, em oração e disposto a partilhar como expressão do amor a si, a Deus e ao próximo.
Veja ainda o que diz o Catecismo da Igreja Católica:
“1435. A conversão realiza-se na vida quotidiana por gestos de reconciliação, pelo cuidado dos pobres, o exercício e a defesa da justiça e do direito (28), pela confissão das próprias faltas aos irmãos, pela correção fraterna, a revisão de vida, o exame de consciência, a direção espiritual, a aceitação dos sofrimentos, a coragem de suportar a perseguição por amor da justiça. Tomar a sua cruz todos os dias e seguir Jesus é o caminho mais seguro da penitência.”
E então retomamos a exortação inicial de Jesus, expressa em Mt 9,13, indicando-nos a sua preferência pela Misericórdia, sabendo que as formas de penitência, como o jejum, a oração e esmola devem assumir na nossa vida a dimensão de expressão do amor a si, a Deus e ao próximo e serem expressão de um coração convertido a Deus.
Graciane Apolônio
Missionária da Com. Canção Nova
Referência:
– CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 1999.