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Saiba o que a Liturgia de cada domingo da Quaresma nos propõe

Normalmente, no tempo quaresmal, muitos de nós buscam meditações dos Santos, do Magistério (Papas), textos bíblicos que fazem referência à misericórdia e à penitência. Outros, por sua vez, vivem retiros em mosteiros etc. De fato, todos os esforços são válidos para mergulharmos no sentido profundo e inesgotável da Quaresma. O que este pequeno artigo quer propor a você é um itinerário litúrgico, para que, semanalmente, seja possível imergir intensamente na proposta que cada missa dominical nos propõe. Uma vez que o próprio Jesus Cristo disse de sua suprema vontade: “[…] desejei ardentemente comer esta páscoa convosco (…) até que ela se cumpra no Reino de Deus” (Lc. 22,15-16). 

Qual é a origem da Quaresma

“Sede agradecidos” | Foto ilustrativo: cancaonova.com

Ressalta-se que “toda a celebração litúrgica, como obra de Cristo sacerdote e de seu corpo, que é a Igreja, é ação sagrada por excelência, cuja eficácia, no mesmo título e grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja” (SC,7). (CIC §1070). Portanto, a nossa vida deve gravitar em torno do altar, dos Sacramentos, da participação plena, fiel, sem hipocrisia; da Liturgia. Como o próprio São Tomás de Aquino dizia sobre a nossa fé; nós não cremos em algo abstrato, nós professamos a nossa fé em algo real; em Jesus Cristo, nosso Senhor. “O ato do crente não termina num juízo, mas numa realidade” (S.T., II-IIae, q.1, a.2, ad 2). Nós não podemos nos contentar em crer na fórmula “uma pessoa”; devemos alcançar a própria pessoa e, mediante a fé e a oração, “tocá-la”. Por isso, quero lhes abrir os olhos para o sentido profundo da Quaresma, em sentido litúrgico. É essencial para a nossa vida de Cristãos Católicos. 

Antes de entrarmos no tema central deste artigo, deixo aqui as palavras do Cardeal Raniero Cantalamessa (OFMCap):   

“Devemos nos pôr seriamente uma pergunta: para mim, Jesus é uma pessoa, ou somente um personagem? Há uma grande diferença entre as duas coisas. O personagem – tipo Júlio César, Leonardo da Vinci, Napoleão – é alguém de quem se pode falar e escrever o quanto queira, mas com o qual é impossível falar. Infelizmente, para a grande maioria dos cristãos, Jesus é um personagem, não uma pessoa. É o objeto de um conjunto de dogmas, doutrinas ou heresias; alguém de quem celebramos a memória na liturgia, que cremos realmente presente na Eucaristia, tudo o que se quiser. Mas, se permanecermos no plano da fé objetiva, sem desenvolver uma relação existencial com ele, ele permanece externo a nós, toca-nos a mente, mas não aquece o coração. Permanece, apesar de tudo, no passado; entre nós e ele se interpõem, inconscientemente, vinte séculos de distância. No fundo de tudo isso, compreende-se o sentido e a importância daquele convite que o Papa Francisco pôs no início da sua Exortação Apostólica Evangelii gaudium: ‘Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito'”(EG, 3). (Quarta Pregação, Quaresma de 2021 – Jesus de Nazaré: uma pessoa. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2021-03/quarta-pregacao-quaresma-2021-cantalamessa-texto-integral.html). 

1º DOMINGO DA QUARESMA: O SENHORIO DE JESUS EM NOSSAS VIDAS

Neste primeiro domingo, a Liturgia aponta que nossa opção deve ser a opção de/por Jesus. É preciso repensar a nossa vida e dar ênfase de que você porta o nome de “cristão”. E para os que querem ser coerentes, cristãos que caminham com a verdade, é claro que acarretará renúncias. As tentações que o demônio criou para Jesus e as repostas próprias de Nosso Senhor são um mapa para a Vida Nova. A primeira leitura nos convida a arrancar de nossas vidas os ídolos. Os fenômenos atuais nos mostram que nós somos os ídolos de nós mesmos, o nosso “eu” – nossa vontade – tem a grandeza de Deus. Idolatramos a nós mesmos ou colocamos em coisas, pessoas toda a nossa esperança. Minha vida torna-se sem sacrifícios, numa busca de confortos desordenados e, ainda, baseada no meu orgulho, na soberba, onde ninguém é melhor do que eu, ou ainda pior, que o meu “eu” seja maior que Cristo. Temos, diariamente a visão clara daqueles que caminham pelo mundo de forma egoísta. Isso é óbvio que é contrário ao evangelho e que estas almas estão, a passos largos, no caminho do erro. Ou nós vivemos dentro daquilo que propõe o “sistema de Deus”, ou viveremos segundo os ditames do “sistema do mundo”, como diz Mons. Jonas Abib. Aparentemente é muito radical, mas essa é a mensagem da Quaresma, é preciso colocar a casa em ordem. Ordenar tudo para o Senhor, num caminho de retidão, verdade, unidade, bondade, de “vida no espírito” (cf. Romanos 8).

Ainda falando sobre o Sistema de Deus, neste primeiro domingo, Jesus diz “não” ao diabo recusando as mentiras, de poder, de facilidades, de atalhos, pois o que Cristo nos propõe é totalmente diferente: “[…] porque sou manso e humilde de coração” (cf. Mt. 11,25-30). É preciso reconhecer, dar lugar a Jesus, como o único Rei de sua vida. Se Ele é nosso tudo, tão-somente caberá a nós correspondermos a Ele generosamente, numa luta contra as nossas paixões interiores, contra o mundo e contra o demônio. O desejo e a luta pela conversão deve ser um caminho para que amemos a Deus, “Aí não haverá mais grego nem judeu, nem bárbaro nem cita, nem escravo nem livre, mas somente Cristo, que será tudo em todos. Portanto, como eleitos de Deus, santos e queridos, revesti-vos de entranhada misericórdia, de bondade, humildade, doçura, paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, toda vez que tiverdes queixa contra outrem. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai também vós. Mas, acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição. Triunfe em vossos corações a paz de Cristo, para a qual fostes chamados a fim de formar um único corpo. E sede agradecidos” (Colossenses, 3,11-15 e seguintes).


2º DOMINGO DA QUARESMA: O CAMINHO DE TRANSFIGURAÇÃO

Vida nova em Jesus é deixar-se transfigurar pela Graça, pelo amor d’Ele por nós. Isso tudo acontece quando buscamos “Amar a Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu pensamento (Dt 6,5); e a teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18) (cf. Lc. 10,27). De fato, Cristo responde às nossas perguntas mais íntimas e revela-nos a nós próprios. Mas como é possível isso? É possível graças à vida de oração! O próprio Jesus se retirava várias vezes para falar com o Pai, até passava noites em claro em oração. Seria isso apenas um fato a desconsiderarmos? Jamais! Se Ele, homem-Deus, santificou nossa humanidade por meio da Encarnação, significa que Jesus é o verdadeiro modelo de vida que nós “cristãos” devemos seguir. O próprio evangelho do segundo domingo é a transfiguração, é pista do que irá acontecer conosco, se seguirmos a Jesus!
Na primeira leitura, Deus mostra sua fidelidade à Abraão, é preciso crer. É entregar-se a Ele! Aderir à vontade de Deus que se manifesta em Cristo com toda sua grandeza. Amar em atitude de entrega, sem hipocrisia, é também narrado na segunda leitura. A sombra da Cruz deve acompanhar todos os nossos atos cotidianos, santificar o nosso dia com a presença de Deus, oferecer a Ele para maior honra e glória de Deus e pela salvação das almas.
Por meio das palavras do Evangelho, notamos com clareza, quer ser transfigurado? Então, faça com que sua vida exale o odor do perfume de Cristo: o odor sacrifical do amor. Amor por Deus e pelos irmãos. “Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Efésios 5, 2).

3º DOMINGO DA QUARESMA: CONVERSÃO, O CAMINHO PASCAL

Só teremos vida plena se, pela Graça, nos tornamos livres do pecado e da escravidão do ego! A afirmação é categórica mesmo. Pode parecer um ideal muito fantasioso, mas é possível levar uma vida sem o pecado! Deus não nos escolheu para rastejarmos como cobras, comendo o pó da terra. Não! Ele nos deu a capacidade de nos unir a Ele. E para chegar aos altos cumes, necessário nos é viver a conversão! Cravar o machado na raiz dos pecados de nossa vida. Ou mudamos de vida ou seremos mudados pela vida desregrada. Ou somos disciplinados no caminho do Senhor ou vamos continuar a patinar. Na obra “Três idades da Vida interior, padre R. Garrigou-Lagrange alerta: 

“Certas almas, como consequência de sua negligência ou preguiça espiritual, nunca saem da idade dos principiantes para continuar na dos proficientes; elas são almas retardatárias, algo parecido com esses meninos, mais ou menos anormais, que não atravessam com sucesso a crise da adolescência e que, ainda não sejam crianças, não chegam nunca ao completo desenvolvimento da idade adulta. Da mesma maneira, essas almas retardatárias ficam sem poder ser catalogadas nem entre os principiantes nem entre os adiantados. E são, por desgraça, muito numerosas.”

Ou ainda, padre Royo Marin que veementemente gritar a nós: “Quarenta dias de deserto precedidos de trinta anos de silêncio. A este preço se salva o mundo. Recolher-se, e somente depois de recolher-se, dar-se. A “solidão” é quem nos julga. Não sejamos jamais “o vagabundo que nunca está em casa”. E recordemos sempre que “mede-se o valor de uma pessoa pela capacidade de isolamento que nela existe” (Cf. Pe. Raul Plus, La fidelidad a la gracia, trad. esp. de A. de Miguel Miguel, [s.l.: s.n.], 1951, p. 59. E padre Antonio Royo Marín, Teología de la perfección cristiana (n. 638), 14.ª ed., Madri: BAC, 2015, p. 781).

Logo, a conversão não é um assunto que deve ser esquecido, como algo ultrapassado, é mais do que essencial para nossa vida de cristãos católicos! A segunda leitura exprimi que não devemos caminhar na hipocrisia, no sentido primitivo grego, do excesso exterior de piedade, mas dentro está podre. E Jesus mesmo é enfático: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e desprezais os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia, a fidelidade. Eis o que era preciso praticar em primeiro lugar sem, contudo, deixar o restante” (Mateus 23, 23). A coerência com os mandamentos é primeiro passo de uma conversão profunda. Já a primeira leitura revela o quanto Deus não suporta as injustiças, o poder arbitrário. A nós, portanto, é preciso lutar para que não nos aconteça o que São Pedro nos diz: “Aconteceu-lhes o que diz com razão o provérbio: O cão voltou ao seu vômito” (Pr 26,11); e: “A porca lavada volta a revolver-se no lamaçal” (II Pedro 2, 22).

A coerência com os mandamentos é primeiro passo de uma conversão profunda.


4º DOMINGO DA QUARESMA: O AMOR DE DEUS NOS ELEVA A COMUNHÃO

Quando Deus revela-se, em seu amor a nós, Ele nos conduz a Ele mesmo. O Evangelho do quarto domingo demonstra a força do amor gratuito, do amor fiel e ainda mais: amor eterno por nós! Assim como está no livro do profeta Oséias, Ele nos atraiu com laços de amor (cf. Os. 11, 4). Seria interessante que você meditasse em Coríntios, capítulo 13, a fim de que nossa razão se abra a entender que o amor, o verdadeiro Amor, é o que não soçobrará diante do mar de ideias, maldades, guerras etc. É o Amor de Deus que, como o mosaico do Santuário do Pai das Misericórdias, nos abraça e eleva a Ele, num abraço eterno de amor gratuito. Eis que a misericórdia de Deus é a manifestação clara do Amor de Deus por nós. E, de fato, uma vez reconciliados com Deus, teremos que nos manter firmes; e, se cairmos, o arrependimento perfeito, como nos diz o Catecismo, ou seja, a contrição que deve ser impelido por não corresponder ao seu amor tão profundo por nós. Ali, na confissão, diante de Deus, saímos redimidos e de volta com as vestes brancas do nosso Batismo. E prontos para receber a liberalidade do amor de Deus e estendê-lo aos irmãos. Seremos chamados filhos de Deus, quando buscamos a reconciliação com Deus, conosco mesmo e com o próximo. Essa vida nova desemboca na felicidade. A comunhão com Deus, a reconciliação conosco mesmo e o amor ao próximo, com mesmo amor com que você é amado por Deus, é o caminho para a grande elevação. E, para nos ajudar, é preciso do alimento sólido. Por isso, fui atrás da escola carmelita, para ajudar a todos. São João da Cruz, explica Frei Maria-Eugênio do Menino Jesus, carmelita descalço (1894-1967), na obra “Quero ver a Deus”, parte “A – ASCESE ABSOLUTA”: 

São João da Cruz apresenta o mesmo ideal que Santa Teresa. Faz as mesmas exigências, com fórmulas mais incisivas e, em certos pontos, mais precisas. No início do seu tratado Subida do Monte Carmelo, colocou um gráfico que indica o itinerário a seguir. Ao principiante, apresentam-se três caminhos. À direita e à esquerda, duas veredas largas e sinuosas. A primeira, que é o caminho do espírito extraviado, vai à procura dos bens da terra: liberdade, honras, ciência, descanso. A segunda, chamada caminho do espírito imperfeito, conduz aos bens do céu: glória, santidade, alegrias, sabedoria. Porque a alma os buscou, pouco os encontrou e não subiu a montanha da perfeição. No meio do gráfico e subindo em via reta ao cume da montanha, há um caminho estreito sobre o qual o Santo escreveu quatro vezes “nada, nada, nada, nada”. Este caminho conduz à plenitude dos dons de Deus, ao banquete da sabedoria divina. O desenho é sugestivo. São João da Cruz comenta-o na parte doutrinal da Subida do Monte Carmelo: 

“Procure sempre inclinar-se 

Não ao mais fácil, senão ao mais difícil. 

Não ao mais saboroso, senão ao mais insípido…

Não ao descanso, senão ao trabalho…

Não a querer algo, e sim, a nada querer. 

Não a andar buscando o melhor das coisas temporais, mas o pior; enfim, desejando entrar por amor de Cristo na total desnudez, vazio e pobreza de tudo quanto há no mundo” (1 Subida 13,6).

Este desprendimento – sublinha o Santo – aplica-se tanto aos bens espirituais como aos bens do mundo. Ele especifica seus avisos no sentido espiritual: 

“Para chegares a saborear tudo, não queiras ter gosto em coisa alguma…

Para chegares a saber tudo, não queiras saber coisa alguma…

Para vires ao que não possuis, hás de ir por onde não possuis… 

Para chegares a ser tudo, não queiras ser coisa alguma” (Ibid., 13,11). 


5º DOMINGO DA QUARESMA: O AMOR DE DEUS NOS RESSUSCITA 

Mais uma vez, a Liturgia enfatiza que o amor de Deus gera em nós a liberdade e a nossa correspondência a Ele, nos dá vida nova e conduz-nos à ressurreição. A primeira leitura refere-se à terra prometida, e nós estamos também em peregrinação rumo à Jerusalém celeste. E, nesse caminho, muitas vezes dolorido, somos impulsionados pelo amor de Deus. E, por isso, o amor de Deus por nós nos impele à libertação daquilo que não nos dá comunhão com Ele. E acabamos nos identificando com o Cristo, nos tornamos “coerdeiros” da promessa. O amor e a misericórdia de Deus são as chaves para a nossa vida! O quinto domingo deve abrir nosso coração para o grande sacrifício de amor de Deus. Concluímos este itinerário quaresmal, com as palavras do Papa Francisco, no Domingo de Ramos de 2021: 

“Recomecemos do espanto; olhemos o Crucificado e digamos-Lhe: «Senhor, quanto me amais! Como sou precioso a vossos olhos!» Deixemo-nos surpreender por Jesus para voltar a viver, porque a grandeza da vida não está na riqueza nem no sucesso, mas na descoberta de que somos amados. Esta é a grandeza da vida: descobrir que somos amados. A grandeza da vida está precisamente na beleza do amor. No Crucificado, vemos Deus humilhado, o Omnipotente reduzido a um descartado. E, com a graça do assombro, compreendemos que, acolhendo quem é descartado, aproximando-nos de quem é humilhado pela vida, amamos Jesus, porque Ele está nos últimos, nos rejeitados, naqueles que a nossa cultura farisaica condena” (Celebração o Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, Homilia do Papa Francisco. Disponível em:https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2021/documents/papa-francesco_20210328_omelia-palme.html).

Guilherme Razuk
Seminarista da Com. Canção Nova

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