É na Misericórdia de Deus que podemos verdadeiramente descansar
Quando falamos de Santa Teresinha, a santinha de Lisieux, alguns detalhes costumam passar mais ou menos despercebidos, mas não para todos. Os que conhecem a sua doutrina da infância espiritual, logo se recordam de que ela não é apenas Teresinha, mas “do Menino Jesus”. E os que se aprofundam em seus escritos e em sua companhia conhecem a sua vivência pessoal do abandono, do sacrifício, e não se esquecem jamais que ela também é “da Sagrada Face”.
Do mesmo modo, é mundialmente divulgado o livro “História de uma Alma”, onde estão os seus três manuscritos autobiográficos. Mas poucos se aprofundam em seus inúmeros outros escritos: peças de teatro, orações, poesias e até os relatos de seus últimos dias e suas últimas palavras anotadas por suas irmãs de Carmelo.
Por isso, quero ressaltar aqui o seu olhar para a Sagrada Face de Cristo e seu talento poético para dar uma breve visão da vivência da Misericórdia Divina na doutrina de Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face.
É verdade que a Misericórdia de Deus nos abarca, envolve e transcende completamente. Somos uma gota de miséria no imenso oceano da Misericórdia. Mas, sem essa pequena gota, a Misericórdia não pode acontecer em nós, na prática. Em outras palavras, se a Misericórdia de Deus submerge todas as coisas, sua eficiência pontual em nós, nesta realidade particular que me envolve (assim como na sua, que compreende somente a sua vida), não pode se manifestar se não existe este desejo em nós e entrega de nós mesmos.
Pura Misericórdia
Utilizando o exemplo bíblico, por maior e mais ardente que seja o desejo do pai pela volta do filho pródigo, é necessário que este mesmo filho, por livre e espontânea vontade, volte para o pai, abra-se para este abraço misericordioso e ofereça seu coração. Ou seja, a misericórdia não ataca, mas acolhe. Ela não caça, mas deixa-se encontrar. Mas também não atua no vazio, apoia-se num ponto, mesmo pequenino, para agir na vida de cada um.
Santa Teresinha entendeu como ninguém essa verdade de deixar-se encontrar pelo Altíssimo e oferecer-se. Como pequena criança, dirigia-se ao Pai para ser abraçada. A partir de seus manuscritos biográficos, percebe-se a doutrina do abandonar-se em Deus, deixar-se envolver por Aquele que É. E sendo tanto, também é a pura Misericórdia.
Um trecho de sua poesia de 07 de junho de 1896, “O céu para mim”, é um claro exemplo de sua entrega à Misericórdia:
“Meu céu é ficar sempre em Sua presença,
Chamando-o de Pai e sendo Sua filha.
Entre seus braços não temo a tempestade
E sigo como lei o abandono total.
Dormir sobre Seu Peito e sob o Seu Semblante
Eis meu céu para mim!…”
Também em “Minha Alegria” (1896) demonstra que esse modo de se entregar não é somente para os bons momentos, as alegrias das graças alcançadas, mas também para os momentos difíceis (“sombra”), para as horas de humildade (“esconder-me”) e para as inevitáveis humilhações que sofremos na vida (“rebaixar-me”). Sem deixar de lado a suma aridez espiritual (“noite”):
“Quando tudo parece abandonar-me,
Minha alegria é ficar na sombra,
Esconder-me e rebaixar-me. (…)
Assim vivo sem nenhum temor
E amo igualmente o dia como a noite.”
Em Santa Teresinha, esse projeto de entregar-se totalmente à Divina Misericórdia é tanto para o dia como para a noite, tanto para as luminosas ocasiões de grandes consolos espirituais assim como para os piores momentos de escuridão interior, tristeza e perda de sentido. É para a alegria sem fim do Menino Jesus, é para a gravidade transcendental da Sagrada Face.
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Teresa é completa, é inteira e, em suas palavras, abandona-se completamente em Deus. Se queremos traduzi-la com outras palavras, mais atuais para o nosso entendimento, podemos dizer que Santa Teresinha aprendeu e nos ensina a verdadeiramente dizer a Nosso Senhor: Eu confio em Vós! Não me importa se me atingem alegrias ou tristezas, eu confio em Vós!
Mas é importante dizer que ela não corre a Deus de braços vazios. Esta é outra leitura que diminui Santa Teresinha. Ela não é a garota bobinha que aprendeu a se esconder em braços poderosos fingindo-se de incapaz. Ela apresenta aquele coração em que a Misericórdia pode apoiar-se para agir. O ponto de contato que, em alguns, pode ser a consciência da própria miséria, a humilhação, o arrependimento, mas também pode ser, como nela, o sacrifício, o oferecimento, a penitência.
Esse desejo de desfolhar-se para Deus e, de fato, realizar o que diz, é o atrator e ponto de apoio para a imensa Misericórdia que se abate sobre ela, a aconchega e a possibilita abandonar-se. Deixemos que ela mesmo explique em sua poesia “Jogar Flores” (1896):
“Que prazer para mim, à noite, jogar flores!…
(…)
Atirar flores é ofertar as primícias
De pequenos gemidos e de grandes dores.
Alegrias e penas, leves sacrifícios,
Estas são minhas flores!…”
Sacrifício, penitência, oferecimento de si mesma e de seus sofrimentos… Estas são suas verdadeiras flores. Sua atração para a união com Deus e a ação da Misericórdia.
E, assim, reconstruímos o que viemos fragmentando desde o início deste artigo: Santa Teresinha tem a inocência e a alegria do Menino Jesus, tem a força madura do sacrifício e do abandono da Sagrada Face. Ela oferece o que pode, sabendo que nada pode; oferece o coração, sabendo que não é importante a extensão dos bens ou das misérias que ele possui, mas que esteja em uma sincera ligação com o Senhor. Por fim, sabe que, feito deste modo, Deus só pode se aproximar do ser humano como amorosa Misericórdia. E é na Misericórdia de Deus que podemos verdadeiramente descansar e, se necessário, também recomeçar.
Flávio Crepaldi
Bacharel em Teologia, colaborador da Fundação João Paulo II/Canção Nova e colunista do Canal Formação no Portal: cancaonova.com