Introdução

Sessão temática sobre as obras de Misericórdia corporais e espirituais

Para uma maior compreensão acerca das obras de misericórdias, convém partir do significado da palavra misericórdia. “A etimologia da palavra misericórdia provém do latim misere (miséria, necessidade) e cor/cordis (coração) e identifica-se com ter um coração solidário com os que têm necessidade.” (CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO, 2015, p.17). Por isso, a palavra misericórdia é comumente associada com a compaixão e o perdão de Deus. Nesta perspectiva, faz-se necessário evidenciar como a palavra misericórdia e suas obras se baseiam na Sagrada Escritura, tanto no Antigo como no Novo Testamento, dado que se trata da Palavra de Deus revelada ao homem em prol de sua salvação eterna.

O livro do Êxodo é o ponto de partida de tal compreensão, dado que, ao exprimir a vocação de Moisés, deixa clara a manifestação da misericórdia de Deus quando diz: “Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor por causa dos seus opressores, pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo.” (Ex 3,7-8). Seguidamente, no livro dos Salmos pode-se verificar as invocações dos salmistas que repetem constantemente: “Tem piedade, misericórdia de mim, Senhor!” (Sl 4,2; 6,3; 9,14; 25,16; 50,1).

Verifica-se que a ação misericordiosa de Deus parte de Sua fidelidade à aliança constituída no Sinai e perpassa toda a história do povo eleito com grande ênfase na experiência profética, visto que, assim como anunciaram as catástrofes, os profetas também revelaram a infinita misericórdia de Deus com grande veemência. Exemplo disso é o profeta Oseias quando profere estes oráculos: “Quero misericórdia e não sacrifício, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6). E mais adiante: “Como poderia eu abandonar-te, ó Efraim, entregar-te, ó Israel? […] Meu coração se contorce dentro de mim, minhas entranhas se comovem. Não executarei o ardor de minha ira.” (Os 11,8-9). Destacam-se de igual modo a profecia de Jeremias (31,20): “Será Efraim para mim um filho tão querido. […] É por isso que minhas entranhas se comovem por ele.” O oráculo do Dêutero-Isaías: “Ainda que alguma mulher se esqueça, eu não me esqueceria de ti” (49,15).

“Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36)

A tradição israelita exprime muitos relatos acerca da misericórdia de Deus, contudo, não é o caso de exprimi-los todos neste artigo. Os que foram citados traduzem a confiança do povo eleito na compaixão de Deus que supera toda a fragilidade humana, uma vez que ela não conhece limites, a não ser o fechamento da alma pecadora. Todavia, apesar da infidelidade do homem, é da misericórdia de Deus que nos vem a libertação de todo mal e adquire, na história da salvação, um valor de salvação futura e definitiva em Jesus Cristo. Entretanto, antes de adentrar no conceito de Misericórdia no Novo Testamento, convém assinalar algumas das obras de misericórdia descritas no Antigo Testamento que fundamentam as obras de misericórdias praticadas no cristianismo: “Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: […] Não consiste em repartires o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes daquele que é a tua carne?” (Is 58,6-7). E Tobias acrescenta como novidade em suas obras de misericórdia a prática de enterrar os mortos: “Nos dias de Salmanasar, eu tinha feito muitas esmolas a meus irmãos de raça; dava meu pão aos famintos e roupa aos que estavam nus; e, quando via o cadáver de algum dos meus compatriotas jogado para fora das muralhas de Nínive, sepultava-o. Enterrei igualmente os que Senaquerib matou.” (Tb 1,16-18).

No Novo Testamento, o conceito de Misericórdia é traduzido de maneira peculiar na Pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo em suas palavras e obras, dado que se encarnou para revelar o amor misericordioso do Pai. Na completude do Novo Testamento, isto é, nos quatro evangelhos e nas cartas, pode-se observar a incomensurável misericórdia do Pai que Cristo revelou, sobretudo em Sua Paixão, Morte e Ressurreição, como ápice desta revelação misericordiosa. Logo, pode-se colocar em relevo algumas das perícopes bíblicas que tão bem evidenciam a ação da misericórdia divina em Jesus Cristo: “Ao ver a multidão, Jesus teve compaixão dela, porque estava cansada e abatida como ovelhas sem pastor.” (Mt 9,36) O próprio Jesus afirma: “Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). O que faz compreender que esta é uma condição essencial para entrar no Reino dos céus: “Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão misericórdia” (Mt 5,7). Esta misericórdia deve se tornar uma ação concreta em nossas vidas cotidianas, assim como o exemplo dado por Jesus acerca do bom samaritano (Lc 10,30-37), e, sobretudo, do Pai misericordioso que perdoa o  filho quando regressa após ter lhe ofendido profundamente (Lc 15,11-32). Uma vez que Deus manifesta sempre Sua misericórdia para conosco, devemos Lhe pedir a graça de exercer a Sua misericórdia com quem nos ofende (Mt 18,23-33).

Neste horizonte, destaca-se o texto paradigmático de Mateus (25,31-46), que com o seu caráter universalista exprime o dever de nos fazermos próximos do outro de maneira ativa, principalmente quando este for mais indefeso em toda e qualquer circunstância. Deste riquíssimo texto de Mateus convém ressaltar os dois versículos que constituem a base sólida de seis, das sete obras de misericórdias corporais na tradição cristã: “Vinde, benditos de meu Pai. […] Pois tive fome e me deste de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e vieste-me ver” (Mt 25, 34-35). Posteriormente, para chegar ao número sete (número da plenitude), a tradição acrescentou “o enterrar os mortos” extraído de Tobias (1,17 s) e considerou o testemunho dos discípulos que enterraram Jesus no sepulcro (Jo 19, 38-42).

As obras de misericórdia corporais e espirituais, na tradição cristã católica, foram se estruturando ao longo dos séculos com base em  Mt 25,31-46, a partir dos ensinamentos dos Padres da Igreja (século II d. C), principalmente com a grande colaboração de Santo Agostinho (354-430), que confirmou o paralelismo entre ambas as formas de se exercer misericórdia. Entretanto, “com São Tomás de Aquino (1225-1274) consolida-se teologicamente a dupla lista. Por um lado, as sete obras de misericórdia corporais, seis procedentes de Mt 25, e a sétima transmitida por Tobias sobre o dever dos funerais. E por outro lado, como numa leitura alegórica delas, apresentam-se as sete obras espirituais que, a partir dele, se difundem amplamente.” (CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO, 2015, p. 46-47).

Uma vez que Deus manifesta sempre Sua misericórdia para conosco, devemos Lhe pedir a graça de exercer a Sua misericórdia com quem nos ofende

Considerando a importância das obras de misericórdia corporais e espirituais como caminho ascético para atingir a perfeição cristã, o Santuário do Pai das Misericórdias vem proporcionar um ensinamento sobre cada uma delas. As corporais: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos enfermos, visitar os presos e enterrar os mortos. As espirituais: dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo e rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Portanto, o próximo artigo colocará em relevo a primeira obra de misericórdia corporal que consiste em dar de comer a quem tem fome. Que, a partir deste conhecimento, o homem moderno possa ser mais elucidado sobre a importância do amor ao próximo, já que somente assim se pode dar testemunho de Jesus Cristo (Mt 25,40).

Áurea Maria,
Comunidade Canção Nova

 

Referências:
COSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO: As obras de Misericórdia Corporais e Espirituais. Tradução de Mário José dos Santos. São Paulo: Paulinas, 2016.

SCHOKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. Tradução de Ivo Storniolo, José Bortolini e José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2002.

 

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