O tempo quaresmal é uma riqueza para a vida de todo cristão, pois nos aproxima de Deus, abranda o nosso coração e nos abre à verdadeira conversão.
Existem muitas formas de nos prepararmos para o período quaresmal, e muitos escolhem penitências externas (jejuns, mortificações) para frear as paixões; essas penitências são válidas e produzem muitos frutos.
Todavia, o presente artigo quer evidenciar que a conversão, a oração e a caridade são meios mais eficazes para nos auxiliar em nossas penitências exteriores.
No período quaresmal, se há uma preocupação maior com as práticas externas, mas por não estar fundamento numa vida de conversão, oração e caridade, não provoca mudança na vida do penitente, ficando assim a prática pela prática.
O intuito deste artigo é apresentar uma nova forma de viver a Quaresma da que já estamos acostumados a viver todo o ano. Por exemplo, deixar de comer um chocolate, tomar banho gelado, dormir no chão, jejuar, não tomar refrigerantes e tantas outras que tem seu valor e esforço, mas que se não forem regados por uma vida de conversão, oração e caridade, tornam-se infrutíferos.
Vejamos como a conversão interior, a oração e a caridade são importantes para bem vivermos nossa Quaresma neste ano de 2023.
Conversão interior
A busca pela conversão deve ser a primeira prática que devemos colocar em evidência dentro do nosso itinerário quaresmal. Por meio dela, vamos crescendo em outras práticas de penitências que serão abordadas neste artigo.
A Igreja nos ensina, por meio de sua Doutrina e nas Escrituras, que a conversão é uma exigência do Reino de Deus, e o Catecismo afirma que “como nos profetas, o apelo de Jesus à conversão e à penitência não visa, em primeiro lugar, às obras exteriores, ao saco e às cinzas, aos jejuns e às mortificações, mas à conversão do coração, à penitência interior”[1].
É notório que para se viver uma boa Quaresma e suas práticas é necessário seguir o apelo de Jesus à conversão interior, pois do contrário “sem ela, as obras de penitência continuam estéreis e enganadoras: a conversão interior, ao contrário, nos impele a expressar essa atitude por sinais visíveis, gestos e obras de penitência”[2].
A conversão interior tem uma força de transformação na vida do cristão que redimensiona toda a sua vida para o Sumo Bem e o rompimento total com o pecado, pois é “uma conversão para Deus de todo nosso coração, uma ruptura com o pecado, uma aversão ao mal e repugnância às más obras que cometemos. O coração do homem apresenta-se pesado e endurecido. É preciso que Deus dê ao homem um coração novo”[3].
A conversão interior faz o homem descobrir que é possível sempre recomeçar, pois todo esse movimento no íntimo de nós garante que “a conversão é, antes de tudo, uma obra da graça de Deus que reconduz nossos corações a Ele. E descobrindo a grandeza do amor de Deus, nosso coração experimenta o horror e o peso do pecado, e então começa a ter medo de ofender a Deus pelo mesmo pecado e de ser separado d’Ele”[4].
A conversão entendida, assimilada e vivida nos leva a viver uma outra prática tão importante para a nossa maturidade espiritual em nossa vivência quaresmal: a oração.
A oração
A oração foi vivida por Jesus intensamente, de forma particular na tentação no deserto. Ele é o nosso modelo de oração, de determinação e de profunda intimidade com o Pai.
Para viver uma quaresma profunda, a prática da oração é indispensável, pois ela nos leva a dar sentido às práticas exteriores, por exemplo o jejum, a mortificação e as penitências que Deus possa nos inspirar, mas sem oração são práticas pelas práticas.
O objetivo da Quaresma é levar o ser humano a uma reflexão profunda de sua vida em vista de sua salvação, e a oração, segundo Santo Afonso de Ligório, “é o grande meio para alcançarmos de Deus a salvação e todas as graças que desejamos”[5].
A oração para o cristão deve ser uma necessidade e deve estar entranhada em seu ser, pois, na Quaresma, nós entramos em grande combate contra o mundo espiritual, contra os embustes de satanás. E por muitas vezes queremos vencer esse combate somente com práticas externas, mas as tentações só podemos vencer se a oração for colocada como arma principal.
O Evangelista Lucas nos alerta para isso: “É preciso rezar sempre e nunca desistir” (Lucas 18,1). O Evangelista Mateus também dá sua contribuição: “Vigiai e orai para não cairdes em tentação” (Mt 25,41).
Na Quaresma, a oração deve ser cultivada por todos nós cristãos como prática fundamental, pois, segundo Santo Afonso de Ligório, “a oração é a mais poderosa arma para nos defendermos dos nossos inimigos. Quem não se serve dela está perdido. Nem duvida o Santo em afirmar que Adão caiu porque não se recomendou a Deus na hora da tentação. Adão pecou porque não rezou”[6].
O Catecismo da Igreja Católica é enfático ao afirmar que a oração é “uma necessidade vital. A prova contrária não é menos convincente: se não nos deixarmos levar pelo Espírito Santo, cairemos de novo na escravidão do pecado”[7].
A Quaresma é um tempo de combate, e precisamos de arma para lutar, mas muitos se esquecem de que é na oração que vencemos a tentação; ela deve ser a nossa primeira arma. Queremos fazer muitas coisas na Quaresma, fortes mortificações e penitências, mas nos esquecemos de que a oração é a nossa arma principal, pois “nada se compara em valor à oração; ela torna possível o que é impossível, fácil o que é difícil. É impossível que caia em pecado o homem que reza”[8].
A própria Igreja diz que a oração deve vir em primeiro lugar, depois outras inspirações que, por meio da oração, o Senhor irá nos motivar, mas “não foi prescrito que trabalhemos, vigiemos e jejuemos constantemente, enquanto para nós é lei rezar sem cessar”[9].
Muitas são as graças que queremos alcançar no período quaresmal, e isso é válido e nobre, mas, segundo Santo Afonso de Ligório, “todas as graças que o Senhor, desde toda a eternidade, determinou conceder-nos, não quer concedê-las a não ser por meio da oração[…] O próprio Santo Tomás de Aquino afirma que “a oração é necessária, não para que Deus conheça as nossas necessidades, mas para que nós fiquemos conhecendo a necessidade que temos de recorrer a Deus, para receber oportunamente os socorros da salvação”[10].
A oração é o meio mais seguro de podermos produzir frutos e viver bem o nosso itinerário quaresmal, pois “saber viver é saber rezar, não saberá viver bem quem não souber rezar. São Francisco de Assis dizia que sem a oração nunca pode uma alma produzir bons frutos. Não têm, pois, desculpa os pecadores que alegam não ter forças para resistir às tentações[11].
Sendo o objetivo da Quaresma nos fortalecer em vista de nossa salvação, Santo Afonso de Ligório garante que “quem reza certamente se salva; quem não reza certamente se condena”[12].
A conversão e a oração vividas de maneira coerente e verdadeira nos levam a uma outra prática quaresmal interior, que é a caridade.
Caridade
A caridade irá abrir nosso horizonte no crescimento espiritual neste tempo favorável que é a Quaresma, pois segundo Bento XVI, “a caridade é amor recebido e dado, é graça. Amor revelado e vivido por Cristo”[13].
A caridade, virtude entranhada na vida de Jesus e em seus atos, é uma construção proveniente de uma conversão profunda e que todos somos “sujeitos de caridade, chamados a sermos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade”[14]., pois como diz São Paulo, “se não tiver amor, não sou nada (1Cor 13,2), ou como São João “quem não ama permanece na morte” (1Jo 3,14). Segundo Francisco Faus, “o amor é “alma” das virtudes cristãs”[15].
A caridade é tão importante para o crescimento espiritual, pois ela é a virtude que “funde inseparavelmente o amor a Deus e ao próximo[16]“.
A virtude da caridade é chamada pela Igreja de teologal, ou seja, foi inscrita pelo próprio Deus em nosso coração. Ela desabrocha em nós por meio de uma profunda conversão interior e regada por uma vida de oração intensa, pois a caridade “é a virtude pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas, por si mesmo, e a nosso próximo como a nós mesmos, por amor a Deus”[17].
É uma exigência do próprio Jesus que faz da caridade o novo mandamento. E nós, como discípulos de Jesus, devemos imitá-Lo, pois este amor recebemos d’Ele. Por isso diz Jesus: “Assim como o Pai me amou, também eu vos amei. Permanecei em meu amor” (Jo 15,9). E ainda: “Este é meu preceito: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12).
Fruto do Espírito e da plenitude da lei, a caridade guarda os mandamentos de Deus e de seu Cristo: “Permanecei em meu amor. Se observais os meus mandamentos, permanecereis no meu amor” (Jo 15,9-10).
O itinerário quaresmal deve nos levar à perfeição e à intimidade profunda com Nosso Senhor Jesus Cristo, e a caridade é “o vínculo da perfeição” (1Cor 13,13).
A caridade nos abre à prática do perdão e à reconciliação com nossos irmãos, dimensão importante em nossa caminhada cristã que, segundo o Papa João Paulo II, “o perdão é uma das formas mais nobres da prática da caridade. O período quaresmal representa um tempo propício para aprofundar melhor o alcance desta verdade. Mediante o sacramento da reconciliação, o Pai doa-nos em Cristo o seu perdão e isto estimula-nos a viver na caridade, considerando o próximo não como um inimigo, mas como um irmão”[18].
Que, neste tempo penitencial e de escuta de Deus, a conversão interior e a oração nos encoraje a pensar e a buscar “por uma caridade autêntica, aberta a todas as dimensões do homem. Esta atitude interior conduzi-los-á a levar os frutos do Espírito (cf. Gl 5, 22) e a oferecer com um coração novo ajuda a quem se encontra em necessidade”[19].
Fontes:
[1] Catecismo da Igreja Católica, n.1430.
[2] Catecismo da Igreja Católica, n. 130.
[3] Catecismo da Igreja Católica, n. 1431-1432.
[4] Catecismo da Igreja Católica, n. 1432.
[5] Santo Afonso de Ligório: A oração, p. 1.
[6] Santo Afonso de Ligório: a oração, p. 22.
[7] Catecismo da Igreja Católica, n. 2744.
[8] Catecismo da Igreja Católica, n. 2745.
[9] Catecismo da Igreja Católica, n. 2742.
[10] Santo Afonso de Ligório: a oração, p. 21.
[11] Santo Afonso de Ligório: a oração, p. 27.
[12] Catecismo da Igreja Católica, n.2744.
[13] Caritas in Veritate: sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, p. 9.
[14] Caritas in Veritate: sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, p. 9.
[15] Francisco Faus, A conquista das virtudes: para uma vida realizada, p. 30.
[16] Francisco Faus, A conquista das virtudes: para uma vida realizada, p. 34.
[17] Catecismo da Igreja Católica, n. 1822.
[18] Mensagem do Papa João Paulo II para a Quaresma de 2001: A caridade não se ofende com o mal recebido (1Cor 13,1), n. 5.
[19] Mensagem do Papa João Paulo II para a Quaresma de 2001: A caridade não se ofende com o mal recebido (1Cor 13,1), n. 6.