As obras de misericórdia espirituais
Corrigir os que erram é a terceira obra de misericórdia espiritual profundamente vinculada à Verdade suprema – o Senhor Jesus Cristo liberta o homem de todo e qualquer erro. A história da salvação mostra-nos a revelação do amor misericordioso de Deus que sempre vai ao encontro do homem também quando, constantemente, insiste em deixar-se guiar por sua debilidade. A vida do povo eleito é uma clara manifestação desse cuidado, haja vista que, às vezes, com castigos e outras através das advertências dos profetas, Javé o atraía para Si, reencaminhando-o pelas vias da salvação. A tradição bíblica traz exemplos concretos dessa pedagogia divina, conforme relata a seguinte perícope:
O povo perdeu a coragem no caminho, e começou a murmurar contra Deus e contra Moisés: Por que, diziam eles, nos tirastes do Egito, para morrermos no deserto onde não há pão nem água? Estamos enfastiados deste miserável alimento. Então o Senhor enviou contra o povo serpentes ardentes, que morderam e mataram muitos. O povo veio a Moisés e disse-lhe: Pecamos, murmurando contra o Senhor e contra ti. Roga ao Senhor que afaste de nós essas serpentes. Moisés intercedeu pelo povo, e o Senhor disse a Moisés: Faze para ti uma serpente ardente e mete-a sobre um poste. Todo o que for mordido, olhando para ela, será salvo. (Nm 21,5-8).
Assim, Deus mostrava sua disposição em perdoar os que acolhiam Sua correção e pacientemente ensinava o povo a confiar n’Ele e a obedecer-Lhe. O profeta Jeremias evidencia a correção de Deus ao seu povo ao anunciar Seu apelo à conversão com as seguintes palavras: “Reformai, portanto, vossa vida e modo de agir, escutando a voz do Senhor, vosso Deus, a fim de que afaste de vós o mal de que vos ameaça” (Jr 26,13). Desse modo, a Sagrada Escritura nos mostra que as nossas más escolhas trazem consequências funestas, quer seja em nível pessoal ou social. Além disso, ao longo da história, Deus sempre convida o gênero humano a fazer um correto uso do livre-arbítrio que Ele concedeu a fim de sermos salvos.
O Antigo Testamento evidencia que Deus se revelou através da Lei mosaica para educar e corrigir os homens e também por meio dos oráculos proféticos. Com a encarnação do Verbo, a misericórdia de Deus tomou um rosto humano: o de Jesus Cristo. Em Jesus, as profecias se cumpriram já que Deus se fez nosso Pastor (Ez 34,11) para nos revelar pessoalmente o Seu amor também por meio das correções, sobretudo, mediante as circunstâncias cotidianas que enfrentamos. Nos Evangelhos, pode-se verificar que Jesus repreende e corrige aqueles que desejam levar pelo caminho reto não somente os fariseus que recusavam sua mensagem, mas também os seus amigos.
Apesar de o apóstolo Pedro ter sido elogiado pela sua bela profissão de fé, na qual tinha proclamado que Jesus era “o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16), pouco depois, ele mesmo foi repreendido com estas palavras duras: “Afasta-te de mim, Satanás!”. E Jesus falou assim a Pedro, porque ele tinha tentado convencer o Mestre a não ir a Jerusalém para ser processado e condenado à morte.
Um outro significativo exemplo é a correção feita à mãe de Tiago e de João, que sonhava uma simples glória humana para os filhos, dizendo a Jesus: “Ordena que estes meus dois filhos se sentem no teu Reino, um à tua direita e outro à tua esquerda” (Mt 20,21). Mas Jesus, corrigindo esta pretensão, disse:
Não sabeis o que pedis. […] Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso servo. E o que quiser tornar-se entre vós o primeiro, se faça vosso escravo. Assim como o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por uma multidão. (Mt 20,22. 26-28).
Ao corrigir Marta, devido à sua preocupação com os afazeres da casa, quando esta pede a ajuda da irmã, Jesus nos ensina a escolher sempre o essencial: “Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a boa parte, que lhe não será tirada” (Lc 10, 41-42).
Firmeza e misericórdia
Pode-se observar que o Senhor sabia usar a linguagem que mais convinha a cada pessoa, sendo sua correção imbuída de firmeza e de misericórdia. Seguindo seu exemplo, devemos recordar que a correção fraterna, praticada com retidão – sem humilhar – foi um cuidado da Igreja desde seus primórdios, conforme mostra São Paulo em sua carta aos Gálatas: “Irmãos, se alguém for surpreendido numa falta, vós, que sois animados pelo Espírito, admoestai-o em espírito de mansidão. E tem cuidado de ti mesmo, para que não caias também em tentação!” (Gl 6,1-2). Desta maneira, o apóstolo traduz o mandamento de Jesus que fundamenta esta obra de misericórdia: “Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão” (Mt 18,15). No entanto, “é verdade que toda correção parece, de momento, antes motivo de pesar que de alegria. Mais tarde, porém, granjeia aos que por ela se exercitaram o melhor fruto de justiça e de paz” (Hb 12,11). Portanto, pode-se afirmar que a correção fraterna constitui um dever de todos os cristãos.
O então Papa Bento XVI nos ajuda a compreender a importância desse ato de caridade fraterna quando diz:
Pela sua estreita ligação com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de importância fundamental nas relações humanas, nomeadamente de natureza pública. Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. (Caritas in veritate, 3).
Assim, o Papa nos mostra a ligação existente entre a Verdade e a caridade nos encorajando a deixarmo-nos guiar pela luz da razão e da fé para que, deste modo, a Verdade opere pela caridade e retire o homem de toda e qualquer mediocridade.
A presente obra de misericórdia – corrigir os que erram – convida-nos à aceitação da correção fraterna: e isso vale tanto para quem a faz, como para quem a recebe. Por este motivo, quando a correção é feita para o nosso bem, precisamos acolhê-la como uma manifestação da misericórdia divina, que se utiliza de instrumentos humanos com o fim de nos guiar por seus caminhos. A misericórdia de Deus pode fazer com que uma correção fraterna, aceita com humildade, consolide um relacionamento, restaure uma amizade, evite futuras complicações e seja o ponto de partida para uma nova etapa da vida. Todavia, para que a correção fraterna atinja o objetivo de tirar o irmão do erro, é necessário pedir ao Espírito Santo palavras acertadas e o momento oportuno para colocar em prática esta obra caritativa. Há que se levar em conta que a pessoa que recebeu a correção precisa de tempo para conseguir a mudança desejada. Também pode acontecer que sua atitude não mude, sendo importante nesses casos que nos limitemos a rezar, já que a oração é o primeiro e principal modo de ajudar. Uma vez plantada a semente de misericórdia, esta deve ser regada sempre com oração e paciência e, certamente, essa semente germinará e dará fruto a seu tempo.
Além disso, devemos considerar que, com a prática da correção fraterna, se combatem eficazmente os falatórios e os comentários irônicos que causam tantos danos nas relações familiares e sociais. Evitar até a menor crítica aos nossos familiares ou amigos, aos superiores e aos que dependem de nós, a conhecidos e desconhecidos, corresponde a uma boa atitude que nos ajuda a avançar na prática da caridade fraterna. Inicialmente, essa prática pode parecer difícil, devido aos numerosos atritos e mal entendidos que enfrentamos ao longo do dia, mas, se houver esforço da nossa parte, a graça de Deus virá em nosso socorro e fará de nós semeadores da serenidade, que evita o confronto e propõe soluções pacíficas.
Tendo sempre a caridade de Cristo que nos impele (2 Cor 5,14), ajudemo-nos mutuamente com o bálsamo da misericórdia, estando atentos às lutas do próximo. Peçamos ao Senhor Jesus a simplicidade de coração para aceitar as correções com humildade e agradecimento, e a graça de corrigir com amor e compreensão aqueles que precisam de nós para esse tipo de ajuda.
Áurea Maria,
Comunidade Canção Nova
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Referências
BENTO XVI. Carta Encíclica Caritas in veritate. 29 jun 2009. Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html. Acesso em: 09 ago. 2020.
SCHOKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. Tradução de Ivo Storniolo, José Bortolini e José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2002.