As obras de misericórdia espirituais
Primeira: dar bom conselho
As obras de misericórdia espirituais são as ações caridosas pelas quais ajudamos o próximo em suas necessidades espirituais, a exemplo de nosso Senhor Jesus Cristo. Assim como as obras de misericórdias corporais, elas também foram agrupadas pela Tradição da Igreja em sete obras, a saber: dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, suportar com paciência as fraquezas do nosso próximo e rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Compostas já no início da era cristã, foram propostas como regra geral a todos os cristãos, para de que deste modo o amor a Jesus testemunhado na caridade para com o próximo, pudesse se refletir claramente na vida dos que generosamente aderem ao Seu Evangelho. Pelo fato de implicar diretamente na salvação eterna do homem, “as obras de misericórdia espirituais têm mais valor que as ajudas materiais, ainda que existam situações em que estas últimas sejam mais urgentes” (CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO, 2016, p. 73). Sobre esta máxima, são Tomás de Aquino assim se expressou:
As esmolas espirituais sobressaem por três razões: 1º) Porque o que é dado tem mais valor, isto é, um dom espiritual é superior a um dom corporal, segundo o livro dos Provérbios: ‘Eu vos dou um dom excelente: não abandoneis a minha lei’. 2º) Em razão da condição daquele a quem se socorre, isto é, o espírito, que é mais nobre que o corpo. Assim, do mesmo modo que o homem deve cuidar mais de sua alma do que de seu corpo, deve também ele fazer por seu próximo, que deve amar como a si mesmo. 3º) Em razão das ações com as quais auxilia o próximo; com efeito, os atos espirituais são mais nobres que os corporais, sempre marcados por certo caráter servil (AQUINO, 1980, II-II, questão 32, artigo 3).
Constata-se que o desenvolvimento das obras de misericórdia espirituais teve início na época patrística, particularmente com Orígenes (185-254) a partir de sua interpretação alegórica do texto de Mt 25, seguido nessa mesma linha por santo Agostinho (354-430). Posteriormente, São Tomás de Aquino (1225-1274) dedicou particular atenção em seus escritos a estas maneiras de socorrer o próximo em suas necessidades espirituais. De acordo com o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização (2016, p.74), as sete obras de misericórdia espirituais podem ser agrupadas em três blocos, sendo as três primeiras relativas à vigilância: dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram; as três seguintes referentes à reconciliação: consolar os tristes, perdoar as injúrias, suportar com paciência as fraquezas do nosso próximo e a sétima e última exprime uma síntese de todas as anteriores: rezar a Deus pelos vivos e defuntos.
A ênfase deste artigo está voltada para a primeira das sete obras de misericórdia espirituais que consiste em “dar bom conselho”. Essa prática caritativa encontra notável relevância na Tradição bíblica que a exprimiu com os seguintes dizeres: “Por falta de direção cai um povo; onde há muitos conselheiros, ali haverá salvação” (Prov 11,14). E ainda: “A ciência do sábio espalha-se como a água que transborda, e o conselho que ele dá permanece como fonte de vida” (Eclo 21,16). Sobretudo, “em todas as coisas ora ao Altíssimo, para que ele dirija teus passos na verdade. Que uma palavra de verdade preceda todos os teus atos, e um conselho firme preceda toda a tua diligência” (Eclo 37,19-20).
Intenção sobrenatural
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o critério para um bom conselho nos remete à questão da Verdade, e, consequentemente, ao próprio Jesus, que assim se apresentou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). Essa Verdade deixa-se encontrar por aqueles que com a consciência reta buscam-na afincadamente. E o amor à verdade leva todo ser humano a procurar o sentido último de sua vida já que “o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente” (Gaudium et Spes, 22).
De maneira particular, os cristãos são chamados a conduzir o gênero humano ao encontro com Cristo por meio do aconselhamento e, para isso, devem primeiramente estar dispostos a acolher os Seus ensinamentos descritos no Evangelho, meditando-os com atenção e recolhimento. Assim, quando for aconselhar, brotarão de seu coração estas perguntas tão imediatas, quanto necessárias: O que Cristo falou? E o que Ele faria? Então, poderá atuar em conformidade e uniformidade com Sua vontade como bem salientou São Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim. A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). O apóstolo alude ao bom exemplo que devemos testemunhar em todas as ocasiões, uma vez que este é o melhor modo de aconselhar os outros. A nossa luta e desejo de conversão constituirá um estímulo para que as pessoas busquem a Jesus e encontrem n’Ele respostas para toda e qualquer situação a ser enfrentada.
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Com efeito, “dar bom conselho” implica um ato de generosidade porque requer sair de si e colocar-se na situação do próximo, procurando compreendê-lo a fundo sem esquecer suas circunstâncias pessoais, para oferecer-lhe uma ajuda adequada. Deve se tratar de um conselho com intenção sobrenatural já que, desse modo, poderá ajudar o outro a ver as situações com o horizonte de Deus que é o mais amplo.
Portanto, pode-se afirmar que essa obra de misericórdia espiritual é radicada em Jesus Cristo, pois demonstrou com toda sua vida o zelo pela salvação das almas e, para tal, enviou os apóstolos “como suas testemunhas pelo mundo inteiro” (Mt 28,19) a propagar a Verdade Suprema. Para dar continuidade à sua obra salvífica, nós, cristãos, devemos considerar que muitas pessoas, mesmo sem saberem, esperam que lhes demos a conhecê-Lo, sendo, para isso, necessário deixarmos de lado o respeito humano, a preguiça ou simplesmente o pensamento de que essa é uma tarefa impossível. Sejamos atrativos com um estilo de vida, de acordo com o Evangelho, para que os outros, ao nos verem, possam afirmar: “Este é cristão porque sabe ouvir e aconselhar, porque não odeia, sabe compreender, é sacrificado e manifesta sentimentos de paz, em suma: é cristão porque ama!
Áurea Maria
Comunidade Canção Nova
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Referências
AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. 2. ed. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Livraria Sulina Editora; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. Disponível em: https://permanencia.org.br/drupal/node/4905. Acesso em: 18 de julho 2020.
CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. As obras de Misericórdia Corporais e Espirituais. Tradução de Mário José dos Santos. São Paulo: Paulinas, 2016.
CONSTITUIÇÃO PASTORAL Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo atual. In: COMPÊNDIO DO VATICANO II: constituições, decretos, declarações. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 2016. p.141-256.
SCHOKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. Tradução de Ivo Storniolo, José Bortolini e José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2002.