“Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”
Falar de vocação exige, primordialmente, evocar o conceito de que toda vocação caracteriza-se como um diálogo de duas liberdades, a de Deus e a do ser humano ou, nas palavras de Cencini, trata-se da liberdade de Deus que chama a liberdade do ser humano. Isso significa que, embora Deus seja o primeiro protagonista da vocação, existe uma parte que depende da liberdade, responsabilidade e generosidade daquele que é chamado. De fato, sem tais atributos, torna-se impossível responder a um apelo para deixar tudo, inclusive a si mesmo, conforme vemos em Mt 16,24: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Diante disso, fica a pergunta: concretamente, como é possível deixar tudo para seguir Jesus? Como ser fiel nesse caminho que exige desapego e abandono?
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Para responder tal indagação, nossa reflexão poderia seguir diversos caminhos e explorar diversas ideias. Porém, lembrando que, no início do ser cristão, não há uma grande ideia, mas o encontro com a pessoa de Jesus Cristo. Conforme disse Bento XVI, nossa proposta é que olhemos para Jesus e O descubramos, não só como o protagonista que faz o chamado, mas também como o modelo de resposta. Isso significa que vamos aprender o “deixar tudo” seguindo a via da contemplação, pois, como ensina Cantalamessa, assim como a ação humana brota de um pensamento, as virtudes Cristãs brotam da contemplação, de forma que a contemplação é a via obrigatória para passar da comunhão com Cristo à imitação de Cristo.

“O consagrado não é apenas chamado para amar a Deus, e sim para amar à maneira de Deus” | Créditos: aldomurillo by GettyImages /cancaonova.com
Nesse olhar contemplativo, partindo do mistério da Encarnação (cf. Jo 1,14), descobrimos que Jesus foi o primeiro a viver a lógica do deixar tudo, “deixando” a si mesmo, conforme relata o hino cristológico de Filipenses 2,6-7: “Sendo Ele de condição Divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano”. Esse radical “deixar a si mesmo” na teologia é expresso com o termo grego Kenosis, que aponta justamente para o autoesvaziamento de Cristo na encarnação. Indo além, ao contemplar a cruz, descobrimos a máxima expressão do amor que renuncia a si mesmo para dar vida ao amado, pois, na morte de cruz de Jesus, “cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo” (Bento XVI, Deus Caritas Est,n.12).
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Ao contemplar Jesus como exemplo a ser imitado no caminho de renúncia que a vocação exige, pode-se levantar o questionamento de que Jesus é um modelo inatingível, pelo fato de ser Deus. Porém, não nos esqueçamos de que, justamente para ser alcançável, Jesus é um Deus que se fez homem! Além disso, o Catecismo da Igreja Católica nos motiva à imitação e comunhão, nos ensinando que “tudo o que Cristo viveu, Ele próprio faz com que possamos viver n’Ele, e Ele viver em nós. ‘Pela sua Encarnação, o Filho de Deus uniu-Se, de certo modo, a cada homem’. Nós somos chamados a ser um só com Ele; Ele faz-nos comungar, enquanto membros do seu corpo, em tudo o que Ele próprio viveu na sua carne por nós, e como nosso modelo (n. 251)”.
Finalmente, é preciso dizer que a via de imitação de nosso Senhor Jesus se torna ainda mais imprescindível se considerarmos que “o consagrado não é apenas chamado para amar a Deus, e sim para amar à maneira de Deus”, conforme ensina Amedeo Cencini, grande perito da vida consagrada. Em outras palavras, a imitação do amor de Jesus, que se entregou sem reservas, é um qualificativo da pessoa que, por amor, decidiu-se entregar a Jesus! Portanto, cada um, na especificidade de sua vocação, será mais fiel e irá perseverar num contínuo caminho de desapego e abandono, se olhar para Aquele que “não tira nada e doa tudo”, ao ponto de doar-se radicalmente no mistério da encarnação e da cruz!
Wilker Henrique Costa Fiuza
Casado e pai de dois filhos, é membro da Comunidade Canção Nova desde 2008. Possui mestrado em Teologia Sistemática (2023). Também é bacharel em Teologia (2018) e formado em Filosofia (2011). Atualmente, é professor na Faculdade Canção Nova (www.fcn.edu.br).
Referências:
Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas Est. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est.html>
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Edição típica Vaticana, Loyola, 2000.
CENCINI, Amedeo. Os sentimentos do filho. Caminho formativo na vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2002.