SÉRIE

Maria Rainha na Sagrada Liturgia, na Arte e na visão Teológica

No artigo anterior foi considerado o título de ‘Maria Rainha’ expresso nos Padres da Igreja e confirmado no ensinamento dos Papas, a partir das reflexões apresentadas na encíclica do Papa Pio XII, Ad Caeli Reginam, a saber ‘Para a Rainha do Céu’, publicada no dia 11 de outubro de 1954. Continuando na análise deste mesmo documento, vão ser expostos, a seguir, alguns dados sobre Maria Rainha na Liturgia, na Arte e na visão Teológica.

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Maria na Liturgia 

A Sagrada Liturgia, que é espelho fiel da doutrina transmitida pelos Santos Padres e da crença do povo cristão, cantou por todo o decurso dos séculos e canta ainda sem cessar, tanto no Oriente como no Ocidente, as glórias da celestial Rainha (N. 25).

Seguem-se, antes, citações de cantos litúrgicos do Oriente. Na festa da Assunção, celebrada na Liturgia dos Armenos, ressoa este hino: “Ó Mãe de Deus, hoje és transferida para o céu sobre os carros dos querubins, os serafins estão às tuas ordens, e os exércitos da milícia celeste prostram-se diante de ti” (N. 26).

No rito bizantino, no Domingo depois do Natal, canta-se: “Ó justo, felicíssimo [José], pela tua origem real foste escolhido entre todos para esposo da Rainha Imaculada, que dará à luz de modo inefável a Jesus Rei”.
Sempre no rito bizantino, o famoso hino Akátistos (literalmente ‘estando de pé’, porque se canta nesta posição), composto no final do V século e de autor desconhecido, comum entre católicos e ortodoxos, assim se expressa: “Vou elevar um hino à rainha e Mãe de quem, ao celebrar, me aproximarei com alegria, para cantar com exultação alegremente as suas glórias… Ó Senhora, nossa língua não te pode louvar dignamente, porque tu, que deste à luz a Cristo nosso Rei, foste exaltada acima dos serafins… Salve, rainha do mundo, salve, ó Maria, senhora de todos nós” (N. 27).

E no Missal etíope, na festa de Maria Mãe de Deus, lê-se: “Ó Maria, centro do mundo todo…Tu és maior que os querubins de olhar penetrante, e que os serafins de seis asas… O céu e a terra estão cheios da santidade da tua glória”. (N. 28).

Lembram-se, depois, passando para a Igreja latina, a antiga e dulcíssima oração “Salve, rainha”, as alegres antífonas “Ave, ó rainha dos céus”, “Rainha do céu, alegrai-vos, aleluia”, e outras que se costumam rezar em várias festas de nossa Senhora, na Liturgia das Horas: “Colocou-se como rainha à tua direita, com vestido dourado e circundada de vários ornamentos”; “A terra e o povo cantam o teu poder, ó rainha”; “Hoje a virgem Maria sobe ao céu: alegrai-vos, porque reina com Cristo para sempre”. Estas duas última invocações se encontram na Festa da Assunção (N. 29).
Em seguida a encíclica lembra as Ladainhas lauretanas, que levam o povo cristão a invocar todos os dias nossa Senhora como rainha: “Rainha dos Anjos, Rainha dos Patriarcas, Rainha dos Profetas, Rainha dos Apóstolos, Rainha dos Mártires…etc.”. E, no santo rosário, que se pode chamar coroa mística da celeste rainha, já há muitos séculos os fiéis contemplam, no quinto mistério glorioso, o reino de Maria, que abraça o céu e a terra (N. 30).

Maria na Arte Sacra

Passa-se, em seguida, a lembrar a arte cristã, intérprete natural da espontânea e pura devoção do povo, desde o concílio de Éfeso (ano 431) que representa Maria como rainha e imperatriz, sentada num trono e adornada com as insígnias reais, de coroa na cabeça, rodeada da corte dos anjos e santos, como quem domina não só as forças da natureza, mas também os malignos assaltos de Satanás. A iconografia da virgem Maria como rainha enriqueceu-se em todos os séculos com obras de arte de alto mérito, chegando até a figurar o divino Redentor no ato de cingir com brilhante coroa a cabeça da própria Mãe (N. 31)

Isso foi confirmado pela atitude dos Papas, que não deixaram de favorecer esta devoção coroando pessoalmente ou por meio de legados as imagens da virgem Mãe de Deus, que eram objeto de especial veneração (N 32).
A esse respeito, num sucessivo artigo, iremos considerar como foi realizada a Coroação de Nossa Senhora Aparecida com o título de Rainha do Brasil.

Rainha na visão teológica 

O Documento de Pio XII passa, em seguida, a apresentar os argumentos teológicos em que se funda a dignidade régia de Maria, mais particularmente a maternidade divina de Maria e sua cooperação na redenção.

O principal argumento em que se funda a dignidade régia de Maria é sem dúvida a maternidade divina. Na verdade, do Filho que será dado à luz pela Virgem, afirma-se na Sagrada Escritura: “Chamar-se-á Filho do Altíssimo e o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de Davi, seu pai; reinará na casa de Jacó eternamente, e o seu reino não terá fim”(Lc 1,32-33); ao mesmo tempo que Maria é proclamada “a Mãe do Senhor” (Lc 1,43). Daqui se segue logicamente que Maria é rainha, por ter dado a vida a um Filho, que no próprio instante da sua concepção, mesmo como homem, era rei e senhor de todas as coisas, pela união hipostática da natureza humana com o Verbo. Por isso muito bem escreveu S. João Damasceno (675-749): “Tornou-se verdadeiramente senhora de toda a criação, no momento em que se tornou Mãe do Criador”. E assim o Arcanjo Gabriel pode ser chamado o primeiro arauto da dignidade real de Maria (N. 33).

Contudo, nossa Senhora deve proclamar-se Rainha, não só pela sua maternidade divina, mas ainda pela parte singular que Deus queria ter na obra da salvação (N. 34). Ora, ao realizar-se a obra da redenção, Maria Santíssima foi intimamente associada a Cristo, e por isso justamente se canta na sagrada liturgia da Festa de Nossa Senhora das Dores: “Santa Maria, rainha do céu e senhora do mundo, estava traspassada de dor, ao pé da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”.

E o monge Edmero de Cantuária (1060-1126), um dos primeiros proponentes da doutrina da Imaculada Conceição, que tinha sido discípulo de S. Anselmo escreveu: “Como… Deus, criando todas as coisas pelo seu poder, é Pai e Senhor de tudo, assim Maria, reparando todas as coisas com os seus méritos, é mãe e senhora de tudo: Deus é senhor de todas as coisas, constituindo cada uma delas na sua própria natureza pela voz do seu poder, e Maria é Senhora de todas as coisas, reconstituindo-as na sua dignidade primitiva pela graça, que lhes mereceu”. De fato, irá afirmar mais tarde o jesuíta espanhol Francisco Suarez (1548-1617): “Como Cristo, pelo título particular da redenção, é nosso senhor e nosso rei, assim a bem-aventurada Virgem [é senhora nossa] pelo singular concurso, prestado à nossa redenção, subministrando a sua substância e oferecendo voluntariamente por nós o Filho Jesus, desejando, pedindo e procurando de modo singular a nossa salvação” (N. 35).

A partir dessas premissas afirma-se que, se Maria, na obra da salvação espiritual, foi associada por vontade de Deus a Jesus Cristo, princípio de salvação, e o foi quase como Eva foi associada a Adão, princípio de morte, podendo-se afirmar que a nossa redenção se realizou, conforme escreveu S. Irineu (130-202), uma “recapitulação”, pela qual o gênero humano, sujeito à morte por causa duma virgem, salva-se também por meio duma virgem; conclui-se legitimamente que como Cristo, o novo Adão, deve-se chamar rei não só porque é Filho de Deus mas também porque é nosso redentor, assim, segundo certa semelhança, pode-se afirmar também que a bem-aventurada virgem Maria é rainha, não só porque é Mãe de Deus mas ainda porque, como nova Eva, foi associada ao novo Adão (N. 36)
Em seguida o Documento ressalta que, no sentido pleno, próprio e absoluto, somente Jesus Cristo, Deus e homem, é rei; mas também Maria – de maneira limitada e segundo certa semelhança, como Mãe de Cristo-Deus e como associada à obra do divino Redentor, à sua luta contra os inimigos e ao triunfo deles obtido participa da dignidade real….Dessa mesma união com Cristo nasce aquele poder real, pelo qual ela pode dispensar os tesouros do reino do Redentor divino; finalmente, da mesma união com Cristo se origina a inexaurível eficácia da sua intercessão junto do Filho e do Pai (N. 37).

No final do Documento, Pio XII determina que seja celebrada a Festa de Maria rainha cada ano e em todo o mundo. No calendário atual a data desta festa é o dia 22 de agosto, exatamente uma semana depois da Solenidade da Assunção de Maria ao Céu. No fundo se na ressurreição celebra-se, em Cristo, a passagem da morte para a vida e na Ascensão ao sua glorificação, pois ‘todo poder foi dado a Ele no céu e na terra’ (Mt 28,18), de maneira correspondente na festa da Assunção celebra-se a passagem da morte para a Ressurreição de Maria, e na festa de Maria Rainha ‘a participação daquela eficácia pela qual justamente se afirma que o seu divino Filho e nosso Redentor reina na mente e na vontade dos homens’ (N. 40). De fato, pela ressurreição Jesus foi entronizado à direita do Pai como rei messiânico, e também Maria, assunta à glória celeste, senta-se como rainha ao lado do Filho e exerce sua função régia de maneira plena e efetiva.

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O fundamento disso é que, tendo o Senhor Jesus prometido associar a sua realeza os seus discípulos, isso deve ser entendido de modo especial para a sua mãe, pois “Se com ele morremos, com ele também viveremos, se com ele perseveramos, com ele também reinaremos” (2 Tm,11-12). E, na mesma linha, lemos: “Vós que me seguistes, sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel“ (Mt 19,28; par. Lc 22,28-30); e “Ao vencedor concederei sentar-se comigo no meu trono” (Ao 3,21).
Portanto, em virtude do mesmo Espírito que a tornou perfeitamente conforme a Cristo, seu Senhor, ela se transforma, por sua vez, em canal de graça. E, embora considerando que as reflexões aqui apresentadas sobre Maria Rainha foram desenvolvidas depois da época apostólica na qual foi escrito o Novo Testamento, tanto a Sagrada Escritura, quanto a Tradição, o Magistério e a Teologia apresentam fundamentos sólidos para a devoção a Maria-Rainha na Igreja.

Bento XVI, na festa de Maria Rainha de 2012, assim se expressou: “Como exerce Maria esta realeza de serviço e amor? Velando sobre nós, seus filhos: os filhos que se dirigem a Ela na oração, para lhe agradecer ou para lhe pedir a sua tutela maternal e a sua ajuda celestial, talvez depois de se ter extraviado pelo caminho, oprimidos pela dor ou angústia, pelas vicissitudes tristes e difíceis da vida. Na serenidade ou na escuridão da existência, dirijamo-nos a Maria confiando-nos à sua intercessão continua, porque do Filho nos possa alcançar toda a graça e misericórdia necessárias para o nosso peregrinar ao longo das sendas do mundo. Àquele que rege o mundo e tem nas suas mãos o destino do universo dirijamo-nos confiantes, por meio da Virgem Maria. Ela, desde há séculos, é invocada como Rainha celeste dos Céus; oito vezes, depois da recitação do santo Rosário, é implorada nas ladainhas lauretanas como Rainha dos Anjos, dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos, dos Mártires, dos Confessores, das Virgens, de todos os Santos e das Famílias. O ritmo destas antigas invocações e preces diárias, como a Salve Regina, ajuda-nos a compreender que a Virgem Santa, como nossa Mãe ao lado do Filho Jesus na glória do Céu, está sempre conosco, no curso quotidiano da nossa vida”.

Referências

BENTO XVI. Audiência Geral. 22 ago. 2012. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2012/documents/hf_ben-xvi_aud_20120822.html. Aceso em 21 jun. 2022.

IWASHITA, Pedro. A realeza de Maria na devoção da Igreja: fundamentos bíblico-teológicos. In: DELGADO, José Luiz Majella (coord.). A Realeza de Maria: I Congresso Mariológico de Aparecida. Aparecida: Santuário, 2004. p. 10-16.

MEO, Salvatore; DE FIORES, Stefano (org.). Dicionário de Mariologia. Tradução de Álvaro A. Cunha et al. São Paulo: Paulus, 1986.

PIO XII, Papa. Carta Encíclica ‘Ad Caeli Reginam’. 11 out. 1954. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_11101954_ad-caeli-reginam.html. Acesso em 14 jun. 2022.

Lino Rampazzo
Doutor em teologia e professor no Curso de Teologia da Faculdade Canção Nova

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