Terceira: dar pousada aos peregrinos
Dar pousada aos peregrinos é a terceira obra de misericórdia corporal expressa por Jesus, por isso trata-se de um imperativo categórico para o cristianismo, uma vez que, no juízo final, Ele nos pedirá contas acerca dessa hospitalidade: “Então, o Rei dirá aos que estão à direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes…’ (Mt 25,34-35)”. Tendo em conta que essa prática caritativa tem como fundamento as palavras de Nosso Senhor, convém colocar em relevo a sua importância para a humanidade, agregando também o que a tradição bíblica traz a seu respeito, uma vez que o Novo Testamento é a consumação do Antigo, como bem expressa o Concílio Vaticano II: “Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado ‘como homem para os homens’, ‘fala, portanto, as palavras de Deus’ (Jo 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (Jo 5,36; 17,4).” (DEI VERBUM, n. 4).
A história de Israel, da qual o cristianismo vai buscar as suas raízes (Mt 5,17), é marcada pelo acolhimento aos peregrinos como cumprimento dos preceitos de Javé a Seu povo, conforme evidenciam as seguintes perícopes: “Quando um migrante se estabelecer convosco em vosso país, não o oprimireis. Ele será para vós como o nativo: tu o amarás como a ti mesmo, porque fostes migrantes no Egito” (Lv 19,33-34). A oração do salmista suplica: “Ouvi, Senhor, a minha oração, escutai os meus clamores, não fiqueis insensível às minhas lágrimas. Diante de vós não sou mais que um viajor, um peregrino, como foram os meus pais” (Sl 39,13). Então, o ser humano, na condição de peregrino, deve ser acolhido e tratado com amor em nome do Deus de Israel, dado que “Ele faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o migrante, ao qual dá alimento e vestuário” (Dt 10,18). Paradigma de verdadeira hospitalidade encontra-se na atitude de Abraão, mediante o acolhimento que prestou aos três personagens em Mambré (Gn 18,2-5), bem como no testemunho de Jó: “o forasteiro não teve de dormir na rua, porque eu abri minhas portas ao caminhante” (Jo 31,32).
O próprio Jesus, ao referir-se ao acolhimento de peregrinos, ensina que, se for preciso, em nome da hospitalidade, até se deve incomodar os amigos, caso falte o necessário para que estes sejam bem amparados:
Se alguém de vós tiver um amigo e for procurá-lo à meia-noite, e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, pois um amigo meu acaba de chegar à minha casa, de uma viagem, e não tenho nada para lhe oferecer; e se ele responder lá de dentro: Não me incomodes; a porta já está fechada, meus filhos e eu estamos deitados; não posso levantar-me para te dar os pães; eu vos digo: no caso de não se levantar para lhe dar os pães por ser seu amigo, certamente por causa da sua importunação se levantará e lhe dará quantos pães necessitar. (Lc 11,5-8).
De acordo com os ensinamentos de Jesus Cristo, estes gestos de hospitalidade para com os necessitados continuam caracterizando o povo de Deus, isto é, a sua Igreja, dado que é chamada a seguir os Seus passos, uma vez que “não temos aqui a nossa pátria definitiva, mas buscamos a pátria futura” (Hb 13,14). O apóstolo São Paulo compreendeu bem esta verdade e, por isso, afirmou que o amor de Cristo deve ser testemunhado sem ambiguidades em relação ao semelhante quando diz: “O amor seja sem fingimento: detestando o mal e apegados ao bem. […] Praticai a hospitalidade” (Rm 12,9.13).
No decurso dos séculos, a tradição cristã, guardiã de tão sagrada doutrina, tem buscado incutir nos seus fiéis a caridade fraterna, com um relevante zelo pelos mais necessitados, já que neles o seu Senhor quis se fazer presente de maneira singular: “todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.” (Mt 25,40). Neste horizonte, pode-se afirmar que muitos são os frutos de santidade colhidos pela Igreja Católica a partir dos inúmeros testemunhos de seus santos e santas, que dedicaram as suas vidas ao serviço da caridade. Sobressai de maneira peculiar a figura de São Martinho de Lima (1579-1639), que se deixou configurar de tal maneira a Cristo no amor pelos pobres e desprotegidos, que não media esforços para socorrê-los, como nos mostra o seguinte relato:
Um dia, ele encontrou, na rua, um pobre índio, sangrando até a morte por uma punhalada, e levou-o ao seu próprio quarto. O Superior, quando soube de tudo isso, repreendeu-o por desobediência [pois antes lhe tinha proibido de trazer doentes no convento, num tempo de epidemia] e foi extremamente edificado pela sua resposta: ‘Perdoa meu erro, e, por favor, instrui-me, porque eu não sabia que o preceito da obediência se sobrepõe ao da caridade’. Então, o Superior deu-lhe liberdade para seguir as suas inspirações posteriormente no exercício da misericórdia. (SÃO MARTINHO, 2017).
Logo, o cristão no mundo contemporâneo, marcado pela globalização do relativismo que a todo o custo procura disseminar um tipo de “amor” baseado no sentimentalismo e no hedonismo, é chamado mais do que nunca a exprimir, com maior ardor, a verdadeira caridade que tem em Cristo a sua fonte e o seu modelo supremo. Para isso, é tão necessário quanto urgente deixar-se guiar por Seu Espírito (Jo 16,13) que continua animando a Igreja a praticar as mais diversas formas de caridade, dentre as quais o “acolhimento ao peregrino”, com tudo o que a dignidade da pessoa humana comporta. Até que o Cristo Jesus volte, peçamos-lhes esta graça, para que, “revestidos do homem novo” (Ef 4,24), lhe ofereçamos obras novas com o selo do Seu amor ágape.
Áurea Maria,
Comunidade Canção Nova
Referências
CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. As obras de Misericórdia Corporais e Espirituais. Tradução de Mário José dos Santos. São Paulo: Paulinas, 2016.
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Dei Verbum sobre a revelação divina. In: COMPÊNDIO DO VATICANO II: constituições, decretos, declarações. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 2016. p.119-139.
SÃO MARTINHO de Lima (Porres). Testemunhos. O Arcanjo no ar, São Paulo, 3 nov. 2017. Disponível em: https://www.oarcanjo.net/site/sao-martinho-de-lima-porres/. Acesso em: 24 maio 2020.
SCHOKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. Tradução de Ivo Storniolo, José Bortolini e José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2002.