QUESTIONE-SE

Onde está o teu irmão?

“Vós sois todos irmãos e irmãs.” (Mt 23,8)

Quando nos reconhecemos verdadeiramente filhos e filhas de Deus, precisa estar muito claro, dentro e diante de nós, que somos irmãos, obras primas oriundas das mãos do mesmo Pai, nosso Pai do Céu, Autor da vida, do amor e da fraternidade.

A partir desta consciência, o que leva o homem a ser movido pelo ódio, rancor, disputas e até a morte de seu semelhante? E aqui não somente a morte corporal, e sim a morte do outro dentro do coração, que nasce da indiferença e da intolerância. Infelizmente, trazemos a erva daninha da inveja, do orgulho, da soberba e a satisfação dos desejos mais egoístas.

Por este motivo, a Campanha da Fraternidade 2024, proposta pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), nos apresenta uma importante reflexão sobre a fraternidade e amizade social, inspirada pela carta encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, do ano de 2020. Refletir sobre a fraternidade e amizade social nos coloca diante desta verdade: somos filhos e filhas amados por Deus, e no outro podemos e devemos encontrar o mesmo Senhor que habita em nós.

Foto ilustrativa: cancaonova.com

Onde está o teu irmão?

Inspirada na carta encíclica do Papa Francisco Fratelli Tutti, a edição de 2024 da Campanha da Fraternidade seguirá o tema “Fraternidade e amizade social” e o lema “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8). O tema e o lema da Campanha da Fraternidade 2024 refletem a preocupação do episcopado brasileiro em aprofundar a fraternidade como contraponto ao processo de divisão, ódio, guerras e indiferença, que tem marcado a sociedade brasileira e o mundo.

Esta temática se faz importante como um ponto de atenção e reflexão, pois nos deparamos com uma sociedade composta por pessoas cada vez mais doentes, isoladas e fechadas no individualismo. Qual é a raiz deste problema que, desde sempre, se apresenta como um veneno que nos divide uns com os outros?

Na Sagrada Escritura, temos a conhecida narrativa dos irmãos Caim e Abel, filhos de Adão e Eva. Caim, movido pela inveja e ciúme de seu irmão Abel, não conseguiu ir além dos maus sentimentos alimentados no seu coração. Podemos refletir a partir da Palavra que está em Gn 4, 6-7:

“O Senhor disse-lhe: Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo.”

Por vezes, também agimos assim com nossos irmãos e irmãs. Não somos diferentes de Caim, pois nos comportamos como cegos, guiados por nossas paixões desordenadas, e enxergamos o outro não como um irmão, mas como uma ameaça, como um inimigo que devemos eliminar de nossa vida. Assim aconteceu com Caim, que chega ao extremo ao executar o próprio irmão. Temos a célebre pergunta de Deus a Caim, em Gn 4, 9:

“O Senhor disse a Caim: Onde está teu irmão Abel? Caim respondeu: Não sei! Sou porventura eu o guarda de meu irmão?”

A voz do Senhor ainda ecoa em nossos ouvidos e corações: “Onde está teu irmão?” Onde está aquele que não demos o perdão? Onde está aquele que gritou por ajuda, pela nossa caridade, nossa presença, nossa atenção, e fomos incapazes de estender a mão?

No decorrer da Sagrada Escritura, tanto no Antigo como no Novo Testamento, podemos encontrar tantas passagens que demonstram a frieza do coração humano, que tomados pelos sentimentos e paixões egoístas, foram instrumentos de guerras, divisões e mortes. Como não se recordar de Davi, que ao se deixar levar pela paixão, foi capaz de mandar matar Urias e se apoderar de sua esposa Betsabeia? E, no tempo de Jesus, quando nos deparamos com o comportamento dos fariseus, escribas, sacerdotes, e tantos outros, incapazes de abrir mão da rigidez da Lei, quando o mais importante deveria ser a pessoa e sua dignidade como filho e filha de Deus?

Neste sentido, Jesus veio a este mundo para nos curar e libertar de tudo aquilo que nos aprisiona e impede de amar, de servir, de ser para o outro um sinal concreto de acolhida e misericórdia. Sabemos que Jesus pagou um alto preço por viver e ensinar o valor do amor e da fraternidade, pois quebrou todas as barreiras que impediam as pessoas de se aproximarem umas das outras.

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Por exemplo, quando retomamos o lema da Campanha da Fraternidade, “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8), devemos compreender o contexto:

“Dirigindo-se, então, Jesus à multidão e aos seus discípulos, disse: Os escribas e os fariseus sentaram-se na cadeira de Moisés. Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem. Atam fardos pesados e esmagadores e com eles sobrecarregam os ombros dos homens, mas não querem movê-los sequer com o dedo. Fazem todas as suas ações para serem vistos pelos homens, por isso trazem largas faixas e longas franjas nos seus mantos. Gostam dos primeiros lugares nos banquetes e das primeiras cadeiras nas sinagogas. Gostam de ser saudados nas praças públicas e de ser chamados rabi pelos homens. Mas vós não vos façais chamar rabi, porque um só é o vosso preceptor, e vós sois todos irmãos.” (Mt 23, 1-8)

Jesus demonstra, a partir do mau testemunho dos fariseus e escribas, como não devemos agir com os irmãos. A fraternidade e a amizade social se concretizam a partir da nossa disposição em querer o bem do próximo, pois ali está a presença de Deus. Ali está uma pessoa que porta a dignidade de filho e filha de Deus. O princípio é querer para o outro aquilo que desejo para mim. E não era o caso dos fariseus e escribas, incapazes de levantar um dedo em favor do mais necessitado, viviam somente por conveniência de seus próprios interesses. O ensinamento que devemos assumir do próprio Cristo, ao final deste discurso, é o seguinte:

“O maior dentre vós será vosso servo. Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado.” (Mt 23, 11)

O valor da fraternidade (Fratelli tutti)

Quando Jesus nos apresenta o valor do serviço, nos fala de um processo que, por vezes, se apresenta como algo difícil de se alcançar e viver: despojar-se de si, do próprio querer, para que o bem do outro seja a prioridade. Este modo de se viver, nos coloca no caminho justo do seguimento de Cristo, que devemos lutar por alcançar. Trata-se de ter os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 2, 5-11).

O único desejo de Jesus era verdadeiramente viver este serviço, livre e movido pelo amor a todos aqueles que cruzavam o seu caminho. Jesus não perdia tempo e levava os discípulos a viverem do mesmo modo. O ápice deste ensinamento se deu no momento de lavar os pés na Última Ceia e no momento de Sua entrega total na Cruz. Desse gesto, Jesus deixa o ensinamento aos apóstolos e para cada um de nós:

“Depois de lhes lavar os pés e tomar as suas vestes, sentou-se novamente à mesa e perguntou-lhes: Sabeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou. Logo, se eu, vosso Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar-vos os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, assim façais também vós. Em verdade, em verdade vos digo: o servo não é maior do que o seu Senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou. Se compreenderdes essas coisas, sereis felizes, sob condição de as praticardes.” (Jo 13, 12-17)

Aqui, adentramos no verdadeiro valor da fraternidade e da amizade social: olhar o outro como alguém digno de todo o bem. Infelizmente, não é o que vemos, principalmente nos dias de hoje. Como no episódio de Caim e Abel, temos um cenário triste, no qual vemos o ser humano tendo como outro como uma ameaça, um inimigo a ser vencido a todo custo.

Papa Francisco aponta na Carta Fratelli Tutti este cenário no número 16: “Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinónimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada? Hoje, um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa como um delírio. Aumentam as distâncias entre nós, e a dura e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés.”

Com isso, parece que a vivência da fraternidade e do amor gratuito torna-se uma utopia, algo inalcançável. De modo concreto, a reflexão nos leva a compreender que não é possível sem um caminho de conversão pessoal. Conversão e disposição de sairmos do nosso fechamento, individualismo e transformar a nossa visão em relação ao outro como alguém digno do nosso amor e acolhimento. O Papa demonstra na Fratelli Tutti, número 68, este caminho que precisamos trilhar a partir da parábola do bom samaritano (….):

“A narração – digamo-lo claramente – não desenvolve uma doutrina feita de ideais abstratos, nem se limita à funcionalidade duma moral ético-social. Mas revela-nos uma caraterística essencial do ser humano, frequentemente esquecida: fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído ‘nas margens da vida. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade.”

De fato, é somente com um olhar de amor para o outro que podemos sair do comodismo e indiferença. Por isso, “cada dia nos é oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova. Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si a dor dos fracassos, em vez de fomentar ódios e ressentimentos.” (Fratelli Tutti, 77)

Os efeitos na vida do homem na vivência da fraternidade

Como já elencado, no processo da vivência da fraternidade e amizade social, existe a parte que cabe a cada um de nós. Sim, precisamos contar com a graça de Deus para irmos além dos nossos limites,  além disso, é preciso o nosso empenho pessoal. Se há uma mudança que gera a renúncia a todo e qualquer resquício de orgulho, soberba e falta de amor, consequentemente deve haver uma disposição exterior de amor ao próximo. São João em sua primeira Carta narra:

“Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus; e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Quem não ama não descobriu a Deus, porque Deus é amor. Eis como se manifestou o amor de Deus entre nós: Deus enviou seu Filho único ao mundo, para que vivêssemos por meio dele. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus mas foi ele que nos amou e nos enviou seu Filho como vítima de expiação por nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou a tal ponto, nós também devemos amar-nos uns aos outros.” (1Jo 4, 7-11)

Da experiência com o amor e a misericórdia de Deus, da mesma forma os frutos precisam ser para com o semelhante. Esta postura dissipa toda a treva que faz o homem permanecer no abismo de suas maldades, impulsionando a ser misericórdia principalmente para com os que estão à margem. Santo Agostinho no seu livro Confissões, nos afirma: “Essa terra (a alma misericordiosa) contém em si esta semente de compaixão, conforme for a sua semelhança com o próximo, porque é o sentimento nascido da nossa miséria que nos leva a ter piedade dos que estão precisando, na proporção em que desejaríamos que nos auxiliassem, se tivéssemos as mesmas necessidades”

A graça de Deus que atua na vida do homem, o remove da inércia e de seus egoísmos. O amor na prática é a realização na vida do movimento que o próprio Deus realizou no interno daquele que provou do pleno amor. Santo Agostinho, nos fala ao comentar o Evangelho de São João: “Principiai a amar o próximo. Reparti o vosso pão como que tem fome, e introduzi em vossa casa os pobres e os peregrinos; quando virdes um nu, vesti-o, e não desprezeis a vossa carne (Is 58,7). Procedendo assim, que vireis a conseguir? Então a tua luz romperá como a aurora”.

Outro passo a ser contemplado é a libertação das correntes que nos impedem de viver a nossa própria liberdade. Sim, pois como afirmamos anteriormente, corremos o risco de estarmos escravizados pelas correntes do pecado que nos torna orgulhosos, individualistas, indiferentes, invejosos e gananciosos.

Se o homem se encontra “livre em sua liberdade” pela graça de Deus, a este mesmo homem é concedida a capacidade de ser livre na relação com o outro. E essa liberdade se dá no próprio amor que não conhece amarras. Assim, descreve São Paulo no seu célebre hino à caridade:

“O amor tem paciência, o amor é serviçal, não é ciumento, não se pavoneia, não se incha de orgulho, nada faz de inconveniente, não procura o próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor, não se regozija com a injustiça, mas encontra a sua alegria na verdade. Ele tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. […] Agora, portanto, permanecem estas três coisas, a fé, a esperança e o amor, mas o amor é o maior”. (I Cor 14, 4-7.13.)

A vida na graça de Deus capacita o ser humano a ordenar todas as coisas para o amor, concedendo-lhe a força que humanamente é portador. Segundo Juan Luiz de La Peña, “o dom de Deus transforma real e interiormente o ser humano; o homem agraciado é capaz de atos e atitudes que antes lhe eram impossíveis. Diante desse chamamento, só me resta comportar-me respondendo livremente. E tal resposta, quando afirmativa, já é fruto do amor que me ama”.

Que o Senhor nos conceda a graça de, em primeiro lugar, vivermos uma experiência profunda e verdadeira com o Seu amor que nos cura, liberta do pecado, nos santifica e nos leva em direção ao irmão, amando-o, servindo-o e acolhendo como cada um é digno de ser amado. Assim seja.

Deus abençoe você!

Fontes:

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. 6a ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

______. Comentário ao Evangelho e ao Apocalipse de São João. Tradução de Pe. José Augusto Rodrigues Amado. São Paulo: Cultor de livros, 2017. (Tomo I)

BÍBLIA Sagrada CNBB. 10ª ed. São Paulo: Edições CNBB/ Editora Canção Nova, 2010.

FRANCISCO. Carta encíclica Fratelli Tutti – sobre a fraternidade e amizade social. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html>.

PEÑA, Juan Luis Ruiz de La. Criação, graça, salvação. Tradução de João Paixão Netto. São Paulo: Loyola, 1998.

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