As obras de misericórdia corporais
A ênfase deste artigo será voltada para a primeira das sete obras de misericórdia corporais que consiste em “dar de comer a quem fome”. Tendo em conta que as obras de misericórdia corporais estão baseadas nas palavras do próprio Jesus (Mt 25,31-46) e que, a partir delas, o gênero humano será julgado no juízo final, é relevante refletirmos sobre o dever do cristão, de trazê-las para a realidade cotidiana, isto é, como devemos aproveitar todas as oportunidades que Deus nos dá para praticá-las. Mediante a eficácia transformadora da Palavra de Deus, o homem hodierno perante este tempo “marcado por profundas e rápidas transformações da sociedade e da cultura” (GS, 4), com maior razão, é chamado a abrir-se ao conhecimento das verdades eternas. Assim, conscientizar-se-á de que é necessário corresponder a este apelo do Senhor Jesus que, quando acolhido, reflete-se numa verdadeira conversão traduzida por meio de obras caritativas. Nesta perspectiva, sobressaem as palavras esclarecedoras de São Tiago quando diz:
De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: “Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos”, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma. (2,14-17).
:: Sessão temática sobre as Obras de Misericórdias
Este ensinamento do apóstolo Tiago se contrapõe à heresia sola fides, pois esta afirma que a fé sozinha pode salvar sem a necessidade das boas obras, o que contradiz as palavras de Jesus: “Então, o Rei dirá aos que estão à direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer’ (Mt 25,34-35)”.
Essa primeira obra de misericórdia corporal nos remete à oração que o Senhor Jesus ensinou: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje” (Mt 6,11): o que faz compreender que a fome é uma necessidade básica, inerente a todo ser humano. Por isso, precisa ser suprida de maneira justa, visto que esta é a vontade de Deus que ama a todos, os justos e injustos (Mt 5,45).
O Papa Bento XVI, em sua Encíclica Caritas in veritate, afirma que “dar de comer a quem tem fome” é uma responsabilidade eclesial oriunda de Jesus Cristo nos seguintes termos:
Em muitos países pobres, continua — com risco de aumentar — uma insegurança extrema de vida, que deriva da carência de alimentação: a fome ceifa ainda inúmeras vítimas entre os muitos Lázaros, a quem não é permitido — como esperara Paulo VI — sentar-se à mesa do rico avarento. Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25, 35.37.42) é um imperativo ético para toda a Igreja, que é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus. (N. 27).
Leia também:
:: Há pecado que não possa ser perdoado?
:: Quais sinais que você procura?
:: O pouco com Deus é muito
Considerando que a fome é uma característica dos pobres, o Catecismo da Igreja (n. 2447) afirma que “dentre esses gestos de misericórdia, a esmola aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. É também uma prática de justiça que agrada a Deus”. Neste horizonte, destacam-se as palavras do evangelista São Lucas, quando coloca em relevo que São João Batista, o precursor de Jesus, assim exortava: “Quem tem duas túnicas dê uma ao que não tem; e quem tem o que comer, faça o mesmo” (Lc 3,11). E também quando mostra o Senhor Jesus que refuta os fariseus dizendo: “Dai antes em esmola o que possuís, e todas as coisas vos serão limpas.” (Lc 11,41). Sobressai, de igual modo, o ensinamento do apóstolo São João quando afirma: “Quem possuir bens deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o seu coração, como pode estar nele o amor de Deus?” (1 Jo 3,17). Uma vez que o preceito de dar esmolas foi praticado e incentivado desde a Igreja primitiva, bem como no decorrer dos séculos, merece relevo a explicação de São Tomás de Aquino expressa na Suma Teológica quando diz:
Dar esmolas é propriamente um ato de misericórdia, como aliás se verifica a partir do vocabulário: em grego, ‘esmola’ deriva de um termo que significa “misericórdia”, tal como o latim miseratio (compaixão). E porque a misericórdia é um efeito da caridade, […] deve-se concluir que dar esmolas é um ato de caridade, por intermédio da misericórdia. (AQUINO, 1980, II-II, questão 32, artigo 1).
Assim sendo, pode-se afirmar que a prática de dar esmolas é uma força extraordinária originada em Deus – Amor eterno – (1 Jo 4,8), que move as pessoas ao compromisso com a generosidade no que toca a justiça e a paz. Este amor divino, revelado e vivido por Cristo, é um dom a ser pedido na oração (Rm 5,5) e é também uma tarefa a ser praticada e consolidada pela prática da virtude teologal da caridade.
O Papa Francisco, em sua carta apostólica Misericordia et misera de 2016, assegura que “o caráter social da misericórdia exige que não permaneçamos inertes, mas afugentemos a indiferença e a hipocrisia para que os planos e os projetos não fiquem letra morta” (n. 19). Logo, permanece atual o apelo à adesão ao projeto misericordioso de Jesus, já que, desta maneira, o homem encontra o seu próprio bem ainda neste mundo e caminha para a plenitude de sua realização pessoal no mundo vindouro.
Em suma, a citação clássica de São João da Cruz: “Ao entardecer desta vida, nos examinarão no amor”, mencionada na bula Misericordiae vultus do Papa Francisco, continua a ressoar com toda a sua força profética, convidando-nos a colaborar para que a justiça e uma vida digna, principalmente no que diz respeito a “dar de comer a quem tem fome”, não sejam meras palavras circunstanciais, mas, sobretudo, o compromisso de quem busca testemunhar a presença do Reino de Deus.
O próximo artigo desta sessão temática colocará em relevo a segunda obra de misericórdia corporal que consiste em “dar de beber a quem tem sede”. Peçamos ao Espírito Santo que nos ajude a glorificar a Santíssima Trindade com as nossas boas obras!
Áurea Maria
Comunidade Canção Nova
Referências
AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. 2. ed. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Livraria Sulina Editora; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. Disponível em: https://permanencia.org.br/drupal/node/4905. Acesso em: 08 de maio 2020.
BENTO XVI. Carta Encíclica Caritas in veritate. 29 jun 2009. Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html . Acesso em: 08 de maio 2020.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Tradução da Conferência nacional dos Bispos do Brasil. 10. ed. São Paulo: Loyola, 2000.
CONSTITUIÇÃO PASTORAL Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo atual. In: COMPÊNDIO DO VATICANO II: constituições, decretos, declarações. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 2016. p.141-256.
PAPA FRANCISCO. Bula do jubileu extraordinário da Misericórdia Misericordiae Vultus. 11 abr 2015. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html . Acesso em: 08 de maio 2020.
PAPA FRANCISCO. Carta apostólica Misericordia et misera. 20 nov 2016. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco-lettera-ap_20161120_misericordia-et-misera.html. Acesso em: 08 de maio 2020.
SCHOKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. Tradução de Ivo Storniolo, José Bortolini e José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2002.