A inteligência: dom de Deus para defender e testemunhar a fé

O dom do entendimento nos abre as portas para o sobrenatural, nos leva a mergulhar nos mistérios divinos

Não há quem nos ensine mais sobre o dom do entendimento – ou da inteligência – do que os discípulos de Emaús. Após a morte de Jesus, eles andavam, como diz a música, “tristes, sem direção, sob o peso da morte e da dor”. Eram discípulos, logo, ouviram Jesus pregar, viram seus sinais e milagres, partilharam a mesa com o mestre, mas, ainda assim, não estavam preparados para o que parecia o fim trágico de suas esperanças. São Lucas nos conta que eles estavam conversando a respeito do que se passara em Jerusalém quando “Jesus em pessoa os alcançou e se pôs a caminhar com eles” (Lc 24,15). Aqueles que consideravam Jesus “um profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e diante de todo o povo”, “o libertador de Israel”, não reconheceram o Senhor. Aqui aparece a primeira pista a respeito do dom do entendimento: por meio dele, é possível enxergar além do que nos dizem nossos olhos, nossos sentidos, nossa inteligência, nossos raciocínios. O dom do entendimento nos abre as portas para o sobrenatural, nos leva a mergulhar nos mistérios divinos.

:: Deus é amor e quem ama permanece em Deus

Jesus, a quem eles não conseguiram identificar, porque estavam limitados aos seus sentidos, lhes pergunta o que os deixou tão preocupados e agitados. Eles respondem fazendo referência às expectativas gloriosas que depositavam sobre Jesus e relatando fatos que lhes parecem irrelevantes – as mulheres não encontraram o corpo quando foram ao sepulcro, anjos informaram que Ele estava vivo. Estavam cegos à Palavra e aos sinais. Jesus chama-os de “insensatos e lentos para crer” e começa uma “grande aula pascal sobre a Escritura”, explicando como a Cruz e a Ressurreição são a chave para compreender a Lei e os Profetas. Apesar de os discípulos não terem reconhecido Jesus mesmo depois de sua exegese bíblica, algo mudou dentro deles, que, tendo chegado a Emaús, dizem a Jesus: “Fica conosco, pois é tarde e o dia está terminando”.

“O Espírito Santo é generoso. ” | Foto ilustrativa: Vytautas Markūnas SDB via Cathopic

Jesus tomou o pão, abençoou, partiu e deu aos dois discípulos. Diz São Lucas que então “abriram-se os olhos deles e o reconheceram”. Até a fração do pão, aqueles dois homens estavam usando a sua própria inteligência para formular suas ideias e pensamentos, seja quando caminhavam sozinhos, quando relataram ao “estranho viajante” o que esperavam de Jesus, o que significava sua morte, e mesmo após ouvir as palavras do Senhor lhes revelando o sentido das Escrituras. O que aconteceu, que fê-los levantar-se imediatamente, voltar a Jerusalém, encontrar os onze com os outros companheiros e lhes contar que “o haviam reconhecido ao partir o pão”?

Dádiva de Deus

O alimento dado por Jesus “lhes abre os olhos, revela-lhes a identidade do caminheiro, a vida do ressuscitado, o sentido da instrução precedente”1. O dom do entendimento lhes foi infundido nesse mesmo momento, e tudo mudou: “esta dádiva faz-nos compreender a realidade como o próprio Deus a entende, isto é, com a inteligência de Deus”, ensina-nos o Papa Francisco2. Enquanto estavam presos àquilo que suas mentes contemplavam, eles literalmente se afastavam da vontade de Deus após a dura provação sobre a qual tanto Jesus lhes avisara. Retornavam para suas vidas antigas, viam sua fé esfriar. Ao ler no íntimo as verdades reveladas por Deus, nem quiseram descansar e retomaram sua caminhada, desta vez decididos, animados, em direção a Jerusalém. O efeito imediato do dom do entendimento foi o crescimento da sua fé. O que antes era confuso, agora estava claro; o que era incompreensível, agora fazia sentido; onde reinava o medo, agora havia coragem.

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O Espírito Santo é generoso. Não reserva o dom do entendimento ou da inteligência apenas para momentos tão dramáticos como a ressurreição de Jesus. Na vida da Igreja, Deus concede esse dom àqueles que o buscam, que desejam, como consequência da sua própria fé, conhecer mais e melhor a verdade revelada por Deus, como nos ensina São João Paulo II3. Podemos receber esse dom enquanto meditamos piedosamente as Sagradas Escrituras, ao ouvir uma homilia, ao adorar Jesus Eucarístico, enquanto rezamos. Os frutos do dom do entendimento são as intuições das verdades de fé, uma compreensão sobrenatural sobre algo que parecíamos já saber, e que nos leva a exclamar, como já vi o Padre Paulo Ricardo dizer: “Antes eu sabia. Agora eu SEI!”.

Há algumas semanas, fui padrinho de uma criança. Tenho quatro filhos – todos batizados, graças a Deus – e sou padrinho de várias crianças, além de já ter dado o curso de preparação para o batismo na minha paróquia, de maneira que posso dizer que àquela altura eu já compreendia bem o significado desse sacramento. Entretanto, a cada palavra, a cada gesto litúrgico do padre, eu me lembrava justamente da exclamação dos discípulos de Emaús: “Não se abrasava nosso coração enquanto nos falava pelo caminho e nos explicava a Escritura?” (Lc 24,32). Em determinado momento, o padre explicou que, em instantes, aquelas crianças seriam sepultadas na pia batismal como criaturas manchadas pelo pecado e ali mesmo ressuscitariam com Cristo, agora filhas adotivas de Deus. A forma como o padre falou atingiu de tal forma a minha inteligência que fui envolvido pelo mistério do batismo e a minha fé em Deus aumentou.

São João Paulo II ensina que essa inteligência sobrenatural não é concedida somente a indivíduos, mas à comunidade, aos pastores e aos fiéis de modo geral, que possuem o sensus fidei, que os guia em suas escolhas e decisões4. Importante entender que não importa o esforço intelectual que façamos, nós somos incapazes de fabricar esse dom sobrenatural. Como o próprio nome diz, é um dom, uma graça, e nasce do amor. Quanto mais eu amo a Deus, mais meus olhos se abrem para o conhecimento de Seus mistérios, pois não cesso de meditar, refletir, pensar sobre Deus e Seu Reino.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo, Arcebispo de Belo Horizonte, afirma que o entendimento é o maior dos dons do Espírito Santo, “é para o coração e para a inteligência tão importante quanto o alimento o é para o corpo”5. Peçamos a Deus essa graça, esse dom, para penetrarmos em Seus mistérios, conhecermos melhor Sua Vontade e crescermos no amor e na fé.

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