REFLITA

Pecado, culpa, pena e graça

Para falar desse tema, começo com a afirmação de São Paulo aos Romanos de que “onde proliferou o pecado superabundou a graça, a fim de que, assim como o  pecado reinará05 para a morte, assim, pela justiça, a graça reine para a vida eterna por Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 5, 20-21). São Paulo escreve essa mensagem aos romanos que, na época, segundo estudiosos, seriam pagãos convertidos ao cristianismo numa Igreja ainda em construção em Roma, capital do vasto Império Romano.

O Catecismo da Igreja Católica, que compõe o seu Magistério e nos ajuda a entender os desígnios de Deus trazidos na Sagrada Escritura, no n.312 afirma que “com o passar do tempo, pode-se descobrir que Deus, em sua providência todo-poderosa, pode extrair um bem das consequências de um mal, mesmo moral, causado por suas criaturas…”.

“Deus nos oferece a graça de Cristo que infunde em nossa alma a vida de Deus por meio do Espírito Santo” | Foto ilustrativa: Arquivo Cn

Segundo o Catecismo da Igreja Católica, no nº 1472, o pecado consiste numa “palavra, um ato ou um desejo contrário à lei eterna. É uma ofensa a Deus. Insurge-se contra Deus numa desobediência contrária à obediência de Cristo”. O pecado tem uma dupla consequência: quando grave (mortal) nos tira da comunhão com Deus e impossibilita a vida eterna (pena eterna) e quando leve (venial), exige purificação aqui na terra e depois, no purgatório. No nº 1473, o Catecismo afirma que “o perdão do pecado e a restauração da comunhão com Deus implicam a remissão das penas eternas do pecado”, mas permanecem as penas temporais, que são as sequelas que o ato pecaminoso deixa, as quais devem ser aceitas como graça de Deus e podem ter seus efeitos amenizados pela prática das obras de misericórdia e de caridade, pela oração e diversas penitências.

Mas é o sacramento da confissão que permite a reconciliação com Deus, recobrando a graça; a reconciliação com a Igreja; a remissão da pena eterna; a remissão parcial das penas temporais; a paz, a serenidade e consolação espiritual; e concede mais força para o combate cristão (cf. Catecismo, nº 1496). Segundo o Catecismo, no nº 1497, “a confissão individual e integral dos pecados graves, seguida da absolvição, continua sendo o único meio ordinário de reconciliação com Deus e com a Igreja”.

Noção de culpa

Mas ao pensar no pecado não se pode deixar de refletir sobre a culpa. No Antigo Testamento não se fazia uma distinção clara entre pecado e culpa, utilizando-se, por vezes, os mesmos termos para designá-los e referindo-se ao ato pecaminoso, as suas consequências, a situação criada pelo pecado ou à disposição interna da qual nasceu o ato pecaminoso.

Mas Born vai dizer que é “o termo ‘āԝōn que corresponde melhor a nossa noção de culpa, porque caracteriza o pecado enquanto nasce de uma intenção perversa e por isso, de modo geral, supõe a consciência de culpa…” (BORN, 1977, p. 339).

No Novo Testamento, pela íntima relação entre pecado e culpa, por vezes o termo utilizado para pecado é também usado para culpa, pois nos sinóticos o messianismo de Jesus perdoa os pecados e tira e cancela a culpa. São Paulo em suas cartas insiste na responsabilidade pessoal, trazendo a noção de consciência dessa culpa. Mas essa culpa pessoal integra a existência comum dos homens que são pecadores e participantes da culpa um dos outros, como numa solidariedade trágica ligada a nossa existência. Born afirma que:

 “essa visão da condição humana não tem nenhum efeito paralisante ou deprimente; ela nos abre os olhos para a obra misericordiosa de Deus a imensidade de sua graça (Rm 5, 1-11). Cristo, ele mesmo inocente, tomou sobre si a culpa de todos os nossos pecados (Gal 3,13; 2Cor 5, 27) e, pelo seu sofrimento expiatório e morte na cruz, libertou-nos do pecado (Rom 6,18.20.22; 8,2), destruiu a nossa condição (Rom 8,1.34; o tema do nosso ‘morrer ao pecado’), resgatou-nos (1Cor 6,20; 7,23; Gal 3,13; Rom 3,24s; Ef 1,7; Col 1,14), pagou a nossa dívida e aniquilou o documento (Col 2,14); por ele obtemos o perdão dos nossos pecados e da nossa culpa(Rom 3,25; Ef. 1,7; Col 1,13; 2,13), que ele expiou pelo sacrifício de sua vida (Rom 3, 23-26, à luz de Is 53, 6-12)” (BORN, 1977, p. 342).

São Tiago exorta os fiéis a uma humilde confissão de culpa em Tg 5,16. E São João entende que a vinda de Jesus Cristo coloca os homens diante de uma escolha decisiva mas livre de crer em Jesus Cristo (cf. Jo 3,18) e pela fé ser salvo das trevas do pecado e da sua culpa, porque “o Cordeiro de Deus, veio para tirar a culpa dos nossos pecados (1Jo 3,5.8; Jo 1,29.36 à luz de Is 53,11s); ele nos trouxe o perdão (1Jo 2,12), salvação (3,17; 10,9; 12,47) e libertação (Jo 8, 32-36), purificou-nos de nossa culpa pela sua Palavra (15,3), sua pessoa (1Jo 2,2), seu sangue (1,17c) e reuniu-nos pelo sacrifício de sua vida (Jo 6,51; 10, 1-21; 19, 31-37)” (BORN, 1977, p. 343).

“Deus para tirar um bem maior de um mal, para fazer superabundar a graça numa situação de pecado” | Foto ilustrativa: Arquivo CN

E é nessa linha de compreensão do pecado, mas também sobre a consciência de culpa que trazemos a reflexão da providência divina de tirar um bem maior de um mal conforme anunciado em Rm 5, 20-21 logo no início desse artigo. É que “Deus é o Senhor soberano de seus desígnios. Mas, para a realização dos mesmos, serve-se também do concurso das criaturas. Isso não é um sinal de fraqueza, mas da grandeza e da bondade do Deus todo-poderoso. Pois Deus não somente dá às suas criaturas o existir, mas também a dignidade de agirem elas mesmas, de serem causas e princípios umas das outras e de assim cooperarem no cumprimento de seu desígnio” (cf. Catecismo, nº 306).

A Santa Confissão

Deus para tirar um bem maior de um mal, para fazer superabundar a graça numa situação de pecado, ele conta com a nossa colaboração. Mas de que forma isso pode acontecer?  

Já falamos acima do sacramento da reconciliação como forma de reconciliação com Deus e com  a Igreja com todos os seus efeitos. Mas destaco agora o que Santa Faustina, no seu Diário, no nº 377, fala da “Santa Confissão”. Ela diz: “Dela devemos tirar dois proveitos: 1. Vamos à confissão para buscar a cura. 2. Para sermos formados – já que a nossa alma, como uma pequena criança, necessita de contínua formação”. E depois de dar essa explicação Santa Faustina faz uma oração que na verdade nos ensina a viver bem a confissão e a contrição. Veja a oração dela e tire proveito para sua santificação:

 “Ó meu Jesus, compreendo profundamente essas palavras e sei, por experiência própria, que a alma não consegue ir longe com as próprias forças; terá muito trabalho e nada fará para a glória de Deus; erra continuamente, visto que a nossa mente é obscurecida e não consegue discernir a própria causa. Em duas coisas prestarei atenção especial: primeiro – escolherei para a confissão o que mais me humilha, ainda que seja uma insignificância, que porém me custa muito e por isso mesmo devo dizê-lo; segundo – exercitar-me-ei na contrição e, não somente por ocasião da confissão, mas despertarei em mim mesma o arrependimento perfeito em cada exame de consciência e, especialmente, à noite ao me deitar. Uma palavra ainda: a alma que deseja sinceramente progredir na perfeição, deve observar estritamente os conselhos que forem dados pelo diretor espiritual. Tanto mais santidade – quanto maior submissão”.

 Vivida dessa forma, a confissão cumpre realmente os papéis designados por Santa Faustina, de cura e formação para a alma.

E sabemos que Santa Faustina é considerada a apóstola da Misericórdia Divina. O Catecismo da Igreja Católica, no nº 1994, afirma que a justificação é a maior manifestação da misericórdia de Deus, “é a obra mais excelente do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus e concedido pelo Espírito Santo”. A justificação consiste na purificação dos nossos pecados e a participação na justiça divina pela fé em Jesus Cristo e pelo batismo (Catecismo, nº 1987). O Espírito Santo é quem tem o poder de nos justiçar, fazendo-nos participar da Paixão de Cristo, tornando-nos membros do seu Corpo que é a Igreja, promovendo em nós a conversão, apartando-nos do pecado. O Espírito Santo é o mestre interior do homem (cf. Catecismo, nºs 1987-1995).

Sobre a justificação destacamos o seguinte:

“A justificação nos foi merecida pela paixão de Cristo que se ofereceu na cruz como hóstia viva, santa e agradável a Deus, e cujo sangue se tornou instrumento de propiciação pelos pecados de toda a humanidade. A justificação é concedia pelo Batismo, sacramento da fé. […] A justificação estabelece a colaboração entre a graça de Deus e a liberdade do homem” (cf. Catecismo, nº 1993).

É por meio da graça de Deus que podemos responder ao seu convite para nos tornarmos filhos adotivos Dele, participantes da sua natureza e da vida eterna (cf. Catecismo, nº 1996). Segundo o Catecismo, no nº 2027, “sob a moção do Espírito Santo, podemos merecer, para nós mesmos e para os outros, todas as graças úteis para chegar à vida eterna, como também os bens temporais necessários.”.

Deus nos oferece a graça de Cristo que infunde em nossa alma a vida de Deus por meio do Espírito Santo, para nos curar do pecado e nos santificar. Essa graça, chamada de habitual, é recebida no Batismo e consiste na permanente disposição para viver e agir conforme a vontade de Deus. Mas existem também as graças atuais que consistem nas intervenções de Deus na origem e no decorrer do processo de conversão e santificação.  Há ainda as graças sacramentais que são dons concedidos por Deus a partir da vivência dos sacramentos, como o da Confissão e da Eucaristia. E há ainda as graças especiais que consistem nos carismas concedidos para edificação da Igreja (cf. Catecismo, nºs 1996 – 2005) os quais são vividos por meio da intimidade com o Espírito Santo. A graça somente pode ser conhecida pela fé em Jesus Cristo morto, crucificado e ressuscitado.

E por isso, mesmo diante da realidade de sermos pecadores, Deus, na sua infinita misericórdia nos enche de graças para que sejamos verdadeiramente livres. As graças divinas jorram do seu coração misericordioso, pois onde há amor a condenação não pode prevalecer. E veja que onde prolifera o pecado superabunda a graça de Deus. Busque-a!

Graciane Apolônio
Missionária da Comunidade Canção Nova

REFERÊNCIAS:

BORN, A. Van. Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 1999.                                                    

A BÍBLIA DA TRADUÇÃO ECUMÊNICA. São Paulo: Loyola; Paulinas, 1995. 

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