O Evangelho de São Mateus nos apresenta a mensagem do Anjo do Senhor para São José, que já tinha decidido separar-se da sua noiva Maria, por ela ter ficado grávida antes de viverem juntos. Vamos ler o texto, a seguir:
“Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados. Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta: Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará Emanuel (Is 7, 14), que significa: Deus conosco.” (Mt 1, 2023).
Nós precisamos entender, antes, o significado da profecia de Isaias e sua sucessiva aplicação no Evangelho de Mateus. Vamos, pois, ler o Antigo Testamento, a partir do texto originário escrito na língua hebraica e, sucessivamente, a sua releitura realizada seja na tradução da Bíblia do Antigo Testamento para a língua grega, como no Evangelista Mateus.
Fazendo isso, vamos seguir a orientação do Concílio Vaticano II, que nos fala da ‘Unidade de ambos os testamentos’ (o Antigo e o Novo Testamento), nestes termos: “Deus, inspirador e autor dos livros de ambos os Testamentos, de tal modo dispôs sabiamente que o Novo Testamento estivesse latente no Antigo, e o Antigo se tornasse claro no Novo. Pois, embora Cristo tenha fundado a nova Aliança no seu sangue (cf Lc. 22,20; 1 Cor. 11,25), os livros do Antigo Testamento, recebidos íntegros na pregação evangélica, obtêm e manifestam seu sentido completo no Novo Testamento (cfr. Mt. 5,17; Lc. 24,27; Rom. 16, 25-26; 2 Cor. 3, 1416), e por sua vez o iluminam e explicam.” (DEI VERBUM, 16).
Contexto histórico
Quanto ao texto do Antigo Testamento, precisamos, antes de tudo, colocá- lo na situação histórica. É, pois, importante salientar que a profecia de Isaías a respeito do Emanuel aconteceu no contexto da guerra siro efraimita. Trata-se da mobilização da Síria e de Efraim (outra designação para o reino do Norte, Israel) contra Judá, na tentativa de depor o rei Acaz, descendente de Davi, já que este se recusou a se aliar com os sírios e israelitas na luta contra a Assíria.
No seu lugar planejavam colocar um outro rei, de origem síria, acabando, assim, com a dinastia de Davi, que até então reinara 250 anos sobre Judá. O ano era 734 a.C. A notícia chegou à casa de Davi: “A Síria está aliada com Efraim” (Is 7,2). Esta iminente ameaça contra a dinastia de Davi causou muito temor no palácio de Judá, como se nota em Isaías 7,2: “Ficou agitado o coração de Acaz”.
O segundo livro dos Reis apresenta Acaz como um rei infiel, nestes termos: “Acaz não fez o que era bom aos olhos do Senhor, seu Deus, como Davi, seu pai, mas seguiu as pegadas dos reis de Israel. Chegou até a passar seu filho pelo fogo, segundo o abominável costume dos povos que o Senhor tinha expulsado de diante dos filhos de Israel. Oferecia sacrifícios e incenso nos lugares altos, nas colinas e debaixo de toda árvore frondosa.” (2 Rs 16, 2-4). Acaz, então, não tinha mais filhos e, no contexto de uma guerra próxima, a dinastia de Davi teria acabado. E Isaías vai ao encontro de Acaz no “aqueduto do açude superior” (7,3).
“Pede ao Senhor teu Deus um sinal” (Is 7,11)
O rei está tomando precauções para o abastecimento de água para Jerusalém, prevendo que o cerco dos sírios e israelitas forçaria o povo a se encurralar para dentro da cidade. Mas, por ordem de Javé, o profeta vai onde o rei está, fazendo-se acompanhar por seu filho Se’ar yaxub, que significa “um resto – voltará”.
O nome do menino detém, pois, uma mensagem de esperança para a dinastia de Davi. Deus quer que o rei Acaz manifeste um ato de fé: “Pede ao Senhor teu Deus um sinal” (Is 7,11). Mas Acaz não tem fé. Ele se recusa, por um lado, a atender à ordem de Deus, e, por outro, tenta demonstrar uma piedade que mascara sua rebeldia: “Não tentarei Javé” (7,12). (PETERLEVITZ, 2018). Mas, apesar da infidelidade dos homens, Deus é fiel e a casa de Davi continuará a reinar. Pois ‘uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará Deus Conosco’ (Is 7,14).
Não podemos esquecer que o texto de Isaías está escrito na língua hebraica e utiliza o termo almâh, que significa ‘jovem mulher’, para indicar a jovem esposa de Acaz. Esta lhe dará um filho, Ezequias, que continuará a dinastia de Davi como rei de Judá. Por isso pode ser chamado ‘Deus conosco’, em hebraico ‘Emanuel’.
Tradição
Agora voltamos para o texto de São Mateus, que não fala simplesmente de uma ‘jovem mulher’, mas expressamente de uma ‘virgem’. E afirma ser esta a afirmação do profeta Isaías. Como explicar isso? Temos que acompanhar a história. O profeta Isaías viveu no VIII século antes de Cristo e sua mensagem foi, antes de tudo, transmitida na língua hebraica. Séculos mais tarde um grande número de judeus morava no Egito, na cidade de Alexandria. O nome desta cidade era uma homenagem ao famoso Alexandre (356-323 a. C.), criador de um grande Império que, a partir da Grécia, passando pelo Egito, chegava até a Índia.
As suas conquistas levaram a ‘impor’ a língua grega. Poderíamos comparar a ‘língua grega’ daquela época
ao inglês de hoje. E o grego se tornou, neste grande território, uma língua falada por muitos povos. É só lembrar que, no alto da cruz de Jesus, se encontrava a inscrição que Pilatos tinha mandado colocar, onde estava escrito, em hebraico, em latim e em grego ‘Jesus nazareno, rei dos judeus’ (cf. João 19,19-20).
Bíblia Grega
Muitos judeus que moravam em Alexandria já não falavam o hebraico, apenas o grego. Daí surgiu a iniciativa de traduzir toda a Bíblia do Antigo Testamento do hebraico para o grego. E como, segundo uma tradição, os tradutores da Bíblia do hebraico para o grego teriam sido setenta, este texto foi chamado a Bíblia dos Setenta (LXX).
A tradução foi realizada aos poucos e, além disso, na Bíblia Grega encontram-se sete composições novas, a saber: Tobias, Judite, os dois Livros dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc. São os chamados livros deuterocanônicos, aceitos pela Igreja Católica e Ortodoxa. Os Setenta, traduziram a palavra hebraica almâh da profecia de Isaías, com a palavra grega parthénos, que significa ‘virgem’. A Igreja primitiva, a começar pelo evangelistas, utilizou mais a Bíblia dos LXX do que a Bíblia hebraica.
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Como escreveu corretamente o biblista Pierre Benoit (1971), inspirando a tradução grega da Bíblia, o Espírito Santo não repudiou a primeira etapa da Bíblia escrita em hebraico, mas a desenvolveu rumo ao universalismo cristão. O mesmo biblista afirma que Nossa Senhora foi a primeira que aprendeu na sua vida o que era a concepção virginal e comunicou esta revelação ao primeiros cristãos. E Mateus, no seu evangelho inspirado, deu esta nova interpretação ao texto do profeta Isaias. É a única vez que São Mateus procede desta maneira? De jeito nenhum. O Evangelho de Mateus é dirigido para uma comunidade cristã proveniente do judaísmo e procurou mostrar-lhes que Jesus é aquele que os profetas anunciaram. Por isso, recorda em muitos episódios da vida de Jesus o texto profético que se cumpre (VIDIGAL, 2006).
Anúncio do Messias
Vamos considerar alguns destes textos. Em 2,6 lemos: “E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as principais cidades de Judá, pois de ti sairá um chefe que vai governar Israel meu povo”. Neste texto ele cita o Profeta Miqueias (5,1), que anunciava a vinda do Messias como novo Davi, também originário de Belém e chamado para restaurar seu reino.
“Em Ramá ouviu-se uma voz, choro e grande lamentação; é Raquel chorando seus filhos, e não quer ser consolada, porque já não existem”
Em 2,15 nós lemos: “(José) ficou lá até a morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor falara pelo profeta, com as palavras ‘Do Egito chamei meu filho’”. Aqui o profeta citado é Oseias (11,1), que falava do povo de Israel apresentado como o ‘filho de Deus’ que sai da escravidão do Egito. Mas o evangelista Mateus dá um novo significado ao mesmo texto para dizer que Jesus é o verdadeiro Filho de Deus que liberta o homem da escravidão do pecado.
Em 2,18 lemos: “Em Ramá ouviu-se uma voz, choro e grande lamentação; é Raquel chorando seus filhos, e não quer ser consolada, porque já não existem”. Aqui cita-se o profeta Jeremias (31,15), que imagina Raquel chorando em seu túmulo em Ramá por seus descendentes elevados para o exílio de Babilônia, no século VI a. C. E Mateus refere estas palavras aos meninos de Belém trucidados por Herodes. Neste mesmo sentido, os 40 dias que Jesus passou no deserto em obediência ao Pai lembram os 40 anos durante os quais os israelitas provocaram a ira de Deus no deserto com sua desobediência. Mas, diferentemente deles, Jesus vence o poder do mal.
O novo Moisés
Quanto ao Sermão da Montanha se, por um lado, Moisés deu aos israelitas a lei recebida de Deus no Sinai, por outro lado, Jesus, o novo Moisés, ensina o sentido verdadeiro da lei, resumindo tudo na fé em Deus Pai e na vivência da fraternidade.
Uma última reflexão sobre a virgindade de Maria. Certamente Jesus podia nascer como todos nós, de uma relação entre um homem e uma mulher. Mas o significado profundo da maternidade virginal de Maria aponta para a seguinte revelação: a vinda humana do Salvador exigiu, por um lado, a cooperação humana de Maria e, por outro, a intervenção extraordinária de Deus. Por quê? Para mostrar que o homem não se salva sozinho: precisa de Deus. E, por outro lado, Deus pede a nossa colaboração, como aconteceu com Maria. E Ela colaborou com fé: ‘Faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1,38).
Dessa maneira a profecia de Isaías chegou a se realizar plenamente, pois Jesus é o Emanuel, o Deus conosco (Mt 1,23. Cf. 28,20), que garante a continuidade perene da nova casa de Davi, isto é, da Igreja, contra todos os poderes adversos (cf. Mt 16,18). (IWASHITA, 2004; SERRA, 1985).
Lino Rampazzo
Doutor em Teologia
Coordenador do Curso de Teologia da Faculdade Canção Nova (Cachoeira Paulista)
Referências
BENOIT, Pierre. Esegesi e Teologia II. Roma: Paoline, 1971.
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Dei Verbum sobre a Revelação Divina. Roma,
18 nov. 1965. In: PAPA PAULO VI, CONCÍLIO VATICANO II, Roma, 18 nov.
1965. Disponível em:
https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
ii_const_19651118_dei-verbum_po.html . Acesso em: 11 ago. 2021.
.
IWASHITA, Pedro. A realeza de Maria na devoção da Igreja: fundamentos
bíblico-teológicos. In: DELGADO, José Luiz Majella (coord.). A Realeza de
Maria: I Congresso Mariológico de Aparecida. Aparecida: Santuário, 2004. p.
10-16.
PETERLEVITZ, Luciano R. Eis que a jovem/virgem est grávida” – (Is 7.14) :
Considerações Exegéticas e Hermenêuticas sobre Isaías 7.10-17. Teologia
Brasileira, n. 88, 7 ago 2018. Disponível em:
https://teologiabrasileira.com.br/eis-que-a-jovem-virgem-est-gravida-is-7-14-
consideracoes-exegeticas-e-hermeneuticas-sobre-isaias-7-10-17/ . Acesso em:
09 ago. 2021.
MEO, Salvatore; DE FIORES, Stefano (org.). Dicionário de Mariologia.
Tradução de Álvaro A. Cunha et al.São Paulo: Paulus, 1986.
VIDIGAL, José Raimundo. Tradução feita dos textos originais, nas notas de
rodapé, notas paralelas. In: BÍBLIA SAGRADA DE APARECIDA. Aparecida:
Santuário, 2006.